sábado, 21 de março de 2015

Fazenda Conceição - Bairro do Ronco – Lorena-SP


A fazenda Conceição (segunda metade do século XIX), ou fazenda Barreiro (século XX), localizada no antigo bairro do Ronco (próximo a outro - Campinho – segundo os documentos) teve diversos proprietários no decorrer de sua existência e sua origem está preteritamente ligada a ocupação das terras da região no século XVIII, na margem esquerda do Rio Paraíba, com o sertão dirigindo-se para a Serra da Mantiqueira, para o Embaú (Cruzeiro), na rota conhecida como “Estrada Real”, e é um dos exemplos, dentre vários, para o estudo da história do Vale do Paraíba, pela possibilidade de compreensão do processo de ocupação e utilização de uma área econômico-agrária estritamente ligada ao caminho das Minas Gerais.
Regredindo a partir do Coronel Vicente Barreiro, proprietário da fazenda nos primeiros anos do século XX, o levantamento histórico e documental tem demonstrado que suas terras e benfeitorias ficaram nas mãos de famílias de um mesmo tronco familiar. Por intermédio de heranças, transações imobiliárias (entre herdeiros), e compra de pequenos sítios e porções de terras[i] vizinhas, comum no período anterior à crise do café e à abolição, com o objetivo de preservar a riqueza[ii].
Toda a região do entorno da fazenda foi posse das famílias Gomes Sandim e Pereira de Castro-Domingues Salgueiro, que posteriormente ligaram-se aos Azevedo, Moreira Lima, ao Visconde de Guaratinguetá e outras famílias, também senhores daquelas terras, até o final do século XIX, quando é vendida após passar por hipotecas oriundas das crises do café e da mão de obra.
O Coronel Vicente Barreiro, proprietário que adquiriu a fazenda entre 1901 e 1905, obteve-a pela compra de duas partes distintas, tornando-a apenas uma fazenda, com o nome de Fazenda do Barreio[iii].
A primeira foi adquirida de James Pellew Nelson (1847-1931), inglês estabelecido no Rio de Janeiro, pertencente a uma rica família de empresários, com diversos negócios no Brasil[iv]. A segunda foi adquirida de Bernardo José de Souza Carvalho Brandão, comerciante estabelecido no Rio de Janeiro, em 1894, que por sua vez adquiriu em 1888, do Coronel Bráulio Moreira de Castro Lima[v]. Entre esses anos, esteve arrendada, por quatro anos, para Egídio Soares Louzada, residente em Piquete, em data de 28/12/1888 (Arquivo Histórico de Lorena – Livro de Escrituras nº 66, Fls. 51, nº 5286) [vi].
James Pellew Nelson adquiriu a fazenda por compra que fez a João Carlos Nogueira de Sá[vii], morador de Lorena, que foi proprietário dela por mais dez anos, período em que os cafezais da mesma foram objetos de penhor agrícola, na faixa de 2.000 a 4.000 arrobas, para a firma Macedo Sobrinho Abreo e Quartim (1887, 1888 e 1890), do Rio de Janeiro[viii](Arquivo Histórico de Lorena – Livros de Escrituras), como também de escritura de hipoteca[ix]no mesmo dia em que foi adquirida do Major Antônio Martiniano de Oliveira Borges, em 29/07/1879 (Escrituras do Cartório do 1º Ofício de Guaratinguetá -Lº 30 – Fls. 164), pela quantia de 130:000$000 (juntamente com mais 39 escravos), a 6% de juros ao ano, por um período de oito anos, sendo que 70:000$000 pela compra do imóvel e 60:000$000 por empréstimo em dinheiro[x]. Foi também hipotecada, respectivamente, em 02/05/1890 e 19/07/1894 para o Banco da Lavoura do Comércio do Brasil, com sede no Rio de Janeiro (Cartório de Registro de Imóveis de Lorena - Livro de Inscrição Especial de Hipotecas).
A compra da fazenda de cultura, onde aparece pela primeira vez com o nome de Conceição, foi realizada por 150:000$000 (valor declarado em escritura), juntamente com os 39 escravos, e incluía ainda: terras, paióis, senzalas, cafezais e casas de morada, esta talvez a mesma existente nos dias atuais e que, por hipótese, deve ter sido construída pelo major ou pelos dois antecessores imediatos, o Visconde de Guaratinguetá, o Major Manuel da Silva Leme ou o Padre Manuel Teotônio de Castro[xi].
O Major Antônio Martiniano de Oliveira Borges, filho do Visconde de Guaratinguetá e de sua primeira mulher, Ana Silvéria Umbelina do Espírito Santo (Baronesa de Guaratinguetá) obteve a fazenda e as terras em duas partes distintas: a primeira por doação, em legítima de sua esposa, Ana Maria da Silva Leme (ou Ana Maria de Oliveira Borges), no inventário do sogro, Major Manuel da Silva Leme, fazendeiro em Areias, em 1875 (MOURA, 2002:166 e 203), por motivo da clausula imposta pelo Visconde de Guaratinguetá ao vender as terras para o referido major (adiante). E a segunda, por compra que fez do irmão, Francisco de Paula Oliveira Borges[xii], político influente no Rio de Janeiro, casado com duas das filhas do Marques de São Vicente.
Por sua vez, o Major Manuel da Silva Leme adquiriu, por compra, em 20/02/1869 (Arquivo Histórico de Lorena – Lº de Escrituras de Lorena nº 42-44 – fls. 138 v), do Visconde de Guaratinguetá, sem a denominação encontrada posteriormente, apenas designada genericamente como a fazenda que foi do Padre Manuel Teotônio de Castro, no bairro do Ronco. O titular fez venda condicionada, exigindo que a mesma fosse dada ao genro, filho do Visconde, por conta da herança que receberia do sogro[xiii]. A fazenda ficou na posse do Major Manuel da Silva Leme por quase seis anos, o que faz pensar que na verdade quem cuidava das terras era o próprio genro e, portanto, a intenção do Visconde parece ter sido privilegiar o filho, evitando desmembramentos consequentes da sua morte, como também a do Major, que tinha outros filhos.
O Visconde de Guaratinguetá adquiriu a fazenda em 22/02/1856 (Arquivo Histórico de Lorena – Lº de Escrituras – nº 27-28 – Fls. 142) do Padre Manuel Teotônio de Castro, que era vizinha de outra propriedade sua, obtida por herança de sua sogra, Dona Silvéria Inocência de Gusmão, casada com o Capitão Francisco Gomes Sandim (pais da baronesa) e que estavam anexadas quando foram vendidas, em 1869, ao Major Manuel da Silva Leme; um sítio e terras descritos e avaliados no inventário da primeira esposa, Ana Silvéria Umbelina do Espírito Santo (mãe do Major Martiniano) ocorrido em Guaratinguetá em 1856 (Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá - Inventários do 1º Ofício de Guaratinguetá):

“A fazenda comprada ao Reverendo Manuel Teotônio de Castro, constando de Terras, Caffezais, Engenhos de Canna e de socar Caffe, Estufa, Moinho, Roda de Mandioca, Monjollos, Trastes de Casa, Cobres assentados, Plantações e todas as mais benfeitorias comprehendendo nesta Fazenda tão somente das Terras que forão de Dona Silvéria e parte que ele ante possuidor comprou a Dona Maria Pereira da Guia de Azevedo, cujo o rumo será levado até onde findar o Certão das Terras que forão de ditta Dona Silvéria ... 22:000$000” - “A fazenda que foi de Dona Silvéria, e seos herdeiros, comprehendendo Terras, Cazas de morada, Engenho de Canna, e todas as mais benfeitorias.... 8:000$000” (fls. 132v.).

e que foram partilhados da seguinte forma: a fazenda que pertenceu ao padre[xiv], Dr. José Martiniano de Oliveira Borges (4:456$000 – fls. 244v.); Alferes Joaquim José da Silva Leme (1:168$000 – fls. 257), Inácio Joaquim Monteiro (2:729$333 – fls. 262); Francisco de Assis Oliveira Borges (2:729$333 – fls. 265); Rafael de Assis Oliveira Borges (2:729$333 – fls. 267v.); Francisco de Paula Oliveira Borges (2:729$333 – fls. 270v.); Dr. Joaquim de Assis e Oliveira Borges (2:729$333 – fls. 272v.); Dona Maria da Ressurreição (2:729$335 – fls. 276); as terras do sítio que foi de Dona Silvéria Inocência[xv]: Inácio Joaquim Monteiro (2:000$000 – fls. 262); Rafael de Assis Oliveira Borges (2:000$000 – fls. 267v.); Francisco de Paula Oliveira Borges (2:000$000 – fls. 270v.); Dr. Joaquim de Assis e Oliveira Borges (2:000$000 – fls. 272v.).
Foi justamente a parte que coube a Francisco de Paula Oliveira Borges que o Major Antônio Martiniano de Oliveira comprou, declarando-a quando fez a venda a João Carlos Nogueira de Sá em 1879 como fruto da herança materna.
No Registro Paroquial de Terras de 1856[xvi], da vila de Lorena, o Visconde de Guaratinguetá faz declaração das terras e do sítio, confirmando as informações sobre os seus bens de raiz[xvii], com os confrontantes e origem. Como também as terras o Padre Manuel Teotônio[xviii], Dona Maria Pereira da Guia e Azevedo[xix]e outros.
Por sua vez, a terra de Silvéria Inocência de Gusmão é provável ter origem também por dupla mão: herança e compra. A primeira por morte do marido, Capitão Francisco Gomes Sandim, ocorrida em 1825 (Arquivo Histórico de Lorena), e a segunda adquirida pela própria do Capitão João de Moura Fialho e de Rodrigo Antônio de Oliveira Leite, ambos de Guaratinguetá[xx]. Portanto, numa primeira impressão, parece que parte das terras vem da família Gomes Sandim, com inicio de ocupação na primeira metade do século XVIII, assim como parte das terras que vieram do Capitão Mor Manuel Pereira de Castro, como adiante se verá.
O Padre Manuel Teotônio de Castro, filho do Capitão Mor Manuel Pereira de Castro e de sua mulher Dona Ana Maria de São José, foi proprietário da referida fazenda e terras por intermédio de compra e herança[xxi]. A compra fez de sua irmã, Dona Maria Pereira da Guia e Azevedo, em 11/07/1852, pelo preço de R$ 200$000 (Arquivo Histórico de Lorena – Livro de Escritura nº25-26 – fls. 238 v.):

“um pedasso de terras [...] que houve por Erança do finado seo pai Capitaõ Manoel Pereira de Castro e que foraõ da finada Antonia Gomes Sandim [...]” dividindo com o comprador e com o Visconde de Guaratinguetá.

Por outro lado, herdou parte das terras e da fazenda no inventário de seu pai, Capitão Mor Manuel Pereira de Castro, realizado em 1846 em Lorena (Arquivo Histórico de Lorena): Em parte de quarto e meio de terras na sobrequadra[xxii]da Fazenda, com 912 braças de testada, onde ele herdeiro tem suas benfeitorias, dividindo com João Batista de Azevedo, no valor de 1:550$000[xxiii].
Maria Pereira da Guia Azevedo recebeu as terras compradas de Antônia Gomes Sandim no inventário amigável da mãe[xxiv], Dona Ana Maria de São José, em 1848 (Arquivo Histórico de Lorena): uma parte de terras pegadas as da fazenda, no valor de 1:000$000. Por sua vez, sua mãe a obteve no inventário do marido, o referido capitão mor.
O padre também herdou outra parte de terras no inventário da mãe: 200 braças de terras da fazenda, atravessada na sobrequadra, pegadas as terras que já pertencem a ele herdeiro, no valor de 398$000[xxv].
Assim, parte da fazenda do Visconde de Guaratinguetá, vendida ao Major Manuel da Silva Leme, estava em mãos do Capitão mor Manuel Pereira de Castro no segundo quartel do século XIX, além de outras descritas em inventário.
Outra parte, o mesmo capitão comprou, por 153$600, de Antônia Gomes Sandim[xxvi], em 06/09/1828, por escritura pública (anexa ao processo de medição judicial das terras de Maria da Guia – fls. 20). Segundo sua própria declaração, no referido processo, recebeu em herança dos pais, Manuel Gomes Sandim (português) e Maria do Rego Barbosa: “[...] huma porção de terras indivisas no Citio do Campinho Termo desta Villa [...]”.
Bem como, outra parte, também adquirida por compra pelo capitão mor, por escritura particular, em 16/02/1813, de Francisco Lopes Vieira e de sua mulher Ana Francisca (transcrita no processo de demarcação judicial – fls. 37), na paragem denominada Ronco, pelo preço de 136$000, com a seguinte descrição: 200 braças de testada[xxvii]no córrego do Monjolo, partindo com terras de Francisco Gomes Sandim e o sertão com Ângelo Rodrigues e pela testada com o Capitão Manuel Pereira de Castro, com casas cobertas de capim, paredes de mão, sem portas, uma cozinha, monjolo e roça de milho.
Pelo que se vê o Capitão mor, no período da compra já possuía outras terras na localidade, o que leva crer que seja a sesmaria que recebeu (Repertório de Sesmarias, p. 241) ou a alguma compra realizada pelo mesmo.
E ainda, as terras, em parte, parecem remeter também para a sesmaria de Antônio Domingues Pereira (Repertório de Sesmarias, p. 44-45), bisavô de Dona Maria Pereira da Guia Azevedo e do padre, portanto, avó de Antônio Domingues Salgueiro, seu primeiro marido, e ainda, por intermédio do Tenente Francisco Gomes Sandim (herança ou não), neto do mesmo Antônio Domingues. O mesmo Francisco Gomes recebeu sesmaria em 26/01/1785 (MOURA, 2002:284).
Além de tudo isso, pode-se chegar, também, a duas outras antigas sesmarias de Lorena, no século XVIII, que pertenceram a Domingos Bicudo Leme, casado com Clara Parente de Camargo, antepassados da família Pereira de Castro.

REFERÊNCIAS

Fontes Primárias
Arquivo Público do Estado. Tombamento dos Bens Rústicos – 1817.
Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá. Livros de Distribuição de Escrituras – 1860-1870.
Cartórios do 1º e 2º Ofício de Guaratinguetá. Escritura de Compra e Venda – Francisco de Paula de Oliveira Borges.
Casa da Cultura de Areias. Inventário do Major Manuel da Silva Leme – 1875.

Obras Impressas
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Repertório de Sesmarias. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1986.
MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. O Visconde de Guaratinguetá: Um Fazendeiro de Café no Vale do Paraíba. São Paulo: Studio Nobel, 2002.
QUEIROZ, Carlota Pereira de. Vida e Morte de um Capitão Mor. São Paulo: Conselho Estadual da Cultura, 1969.
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[i] Lucila Herrmann discorre sobre a questão da anexação para Guaratinguetá, com maior intensidade, no segundo quartel do século XIX, mas o processo é anterior e a fazenda Conceição é um exemplo típico, formada a partir dessa modalidade já no inicio do século XVIII, a partir da doação de sesmarias, onde o contemplado obtia grande porção de terras.
[ii] Tomando como ponto de partida o século XVIII, período inicial da ocupação das terras da fazenda e de seu entorno, vê-se que alguns herdeiros também se estabeleceram em terras próprias a partir do núcleo inicial, constituindo fazendas distintas, a partir do segundo quartel do século XIX, graças a um ou mais indivíduos que acumularam patrimônio agrário num período anterior, como os casos da Fazenda do Campo, pertencente a Dona Maria da Guia Pereira e Azevedo (herança dos pais) , da Fazenda do Bonito, do Padre Manuel Teotônio de Castro, da fazenda do Capitão Domiciano Ferreira da Encarnação (no Embaú) , e das terras de Dona Silvéria Inocência de Gusmão, casada com o Capitão Francisco Gomes Sandim (depois com o Visconde de Guaratinguetá), todas limítrofes da fazenda.
[iii] Numa primeira análise é possível afirmar que as duas glebas tenham origem comum. A ideia é verossímil na medida em que uma delas veio da família Moreira Lima, entrelaçada com a família do Capitão Mor Manuel Pereira de Castro.
[iv] Juntamente com os irmãos Alexander Pellew Wilson e o Conde de Wilson (filhos do fundador Edward Pellew Wilson), foi proprietário e diretor da firma “Wilson Sons”, que mantinha entre inúmeros negócios espalhados pelo país, a Companhia Bahiana de Navegação a Vapor, em 1881, com cerca de quinze vapores (BUENO & BARATA, Dicionário das Famílias Brasileiras, p. 1733-1734 – Vol. II e http:/pt.wikpedia.org/wiki/Eduardo Pellew Wilson J%C3%BAnior).
[v] É possível que esta gleba estivesse hipotecada pelo Coronel Bráulio, uma vez ser o proprietário um comissário de café, que a recebeu por pagamento da mesma.
[vi] Na referida escritura aparece também com a denominação de Fazenda Conceição, embora seja uma gleba que aparentemente não fazia parte das terras oriundas do Visconde de Guaratinguetá como é o caso da outra parte das terras, objeto de nossa análise mais adiante. Tal parte ainda não foi estudada, mas parece verídico alguma ligação das terras do Coronel Bráulio com as terras do Visconde e do Padre Manuel Teotônio de Castro.
[vii] João Carlos Nogueira de Sá era mineiro de Bapendí, casado com Maria Júlia de Oliveira César, neta do Visconde de Guaratinguetá. Foi proprietários de várias fazendas em Lorena, antes de se mudar para Jaboticabal, onde faleceu (MOURA, Carlos E. Marcondes de. 2 ed., P. 249).
[viii] Firma comissária de café, estabelecida a Rua de São Bento, sendo um dos seus sócios: Antônio José Marques d’Abreu Jr. (Arquivo Histórico de Lorena – Livros de Escrituras).
[ix] No período muitas fazendas da região estiveram nessa condição, nas mãos, principalmente, de firmas capitalistas ou bancos estabelecidos na Praça do Rio de Janeiro. Por vezes, quando não era satisfeito o pagamento total, ou estando parcialmente paga, a hipoteca era prorrogada e mesmo transferida para outros, que pagavam a divida pendente (com os juros), assumindo, portanto, o papel de credor junto ao proprietário. Embora não se tenha notícia, parece lógico que James Pellew Wilson seja um caso de hipoteca (objeto de transferência ou não) por não se ter provas do interesse do mesmo em investir em fazendas da região. Muitas hipotecas foram motivos de processos jurídicos denominados Executivos, em que o credor entrava com ação para receber a dívida.
[x] Nesse caso específico, a hipoteca foi realizada para garantir o pagamento pela compra da fazenda, avaliada pelo preço acima denominado. Apesar de não constar da escritura, parece que a negociação dos escravos foi paga no ato e paralelamente o dinheiro pago foi emprestado ao próprio pagador – João Carlos Nogueira de Sá.
[xi] As opiniões a respeito são diversas por não haver uma data especificada para a construção da sede da fazenda, também objeto do presente estudo. Segundo opinião do historiador José Luiz Pasin, por suas características, tem a sua construção realizada antes de 1860, o que parece correto afirmar, embora seja eficaz uma comparação arquitetônica mais apurada sobre o assunto, juntamente com análise do material empregado para a construção, na qual se baseia a opinião do professor Pasin.
[xii] A escritura não foi encontrada, mas acredita-se que seja de natureza pública, embora em algumas ocasiões, usava-se o expediente da escritura particular ou “de mão”, como era também designada a forma de expedir e reconhecer um documento de compra e venda. No tabelião público, por escrita peculiar e diferenciada da pública. A parte adquirida, com certeza, parte de terras, que mais uma vez foram anexadas na fazenda.
[xiii] Era usual o genro ou outro herdeiro receber alguns bens antes mesmo do falecimento. Nesses casos tudo era determinado formalmente por documento, que eram ou não apensos ao inventário, dando conta do recebimento antecipado. No caso específico acreditamos ter recebido pelo inventário, caso contrário, o major pode ter feito a doação por escritura pública, declarando ser em legítima de sua filha, entre 1873 e 1875, já que em 03/03/1873 (não localizada) a escritura de 1869 foi ratificada pelo Visconde e pelo Major Antônio Martiniano de Oliveira Borges.
[xiv] Embora a maioria tenha herdado partes não igualitárias, é possível que a fazenda e as terras tenham ficado em parte indivisas, isso porque não foram encontradas escrituras de compra e venda dos herdeiros para o Visconde, com a exceção do Alferes Joaquim da Silva Leme, Dr. José Martiniano de Oliveira Borges (Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá - Livros de Distribuição de Escrituras – 1858-1859) O que pode ter ocorrido, em 1869, foi uma venda consentida dos herdeiros, que muito provavelmente receberam por fora as respectivas partes que lhes coube no inventário da mãe, o que era singular o conjugue sobrevivente ficar devendo a satisfação dos bens entre os herdeiros.
[xv] Silvéria Inocência de Gusmão faleceu em Lorena em 1859. No inventário, conservado no Arquivo Histórico de Lorena, as terras não aparecem mais, sendo descritos apenas bens de valor menor, entre eles, uma residência urbana. Era costume nas descrições de imóveis nas escrituras dos séculos XVIII e XIX referirem-se a proprietários anteriores, mesmo sendo outro o detentor, como a exemplo “o sítio que foi de Dona Silvéria Inocência”.
[xvi] Arquivo do Estado de São Paulo, microfilmado, rolo RT 18. O Registro Paroquial de Terras, realizado em todo o Brasil, teve origem na lei que procurou disciplinar e regularizar as terras e posses, e assim cada paróquia, tendo como responsável o vigário, os proprietários eram obrigados a fazer declaração de suas terras, dando-lhes origem e como foram adquiridas. No documento vem descritos estritamente, de forma irregular e inconstante, o nome, o tamanho, a denominação, o tipo de propriedade e os confrontantes.
[xvii] O Visconde, além das terras referidas, já possuía em 1856 outras porções de terras confrontantes com as mesmas, oriundas de compra realizada a outros pequenos sitiantes. Dentre as levantadas estão as terras localizadas no Porto do Meira (uma delas compradas em 26/11/1851 de João Batista de Azevedo e sua mulher Emidia Maria da Assunção) e no Macaco. As terras do Ronco, segundo o Registro de Terras, confrontavam com Dona Maria Pereira da Guia e Azevedo pelo lado esquerdo, pela testada (frente) rumando o sertão com terras de Marcelino José da Silva Borges (Porto do Meira) e com João Batista de Azevedo (herdeiro do Capitão Manuel Pereira de Castro) e outros (Registro nº 274).
[xviii] A propriedade do padre era denominada “Fazenda do Bonito”, como está descrito em seu inventário, realizado em 1872. Em seu testamento, a fazenda foi deixada para Dona Rita Antônia da Conceição, para que nela morasse e cuidasse até quando quisesse, ou até quando morresse. Em 1856, segundo o Registro Paroquial de Terras, o padre possuía também terras no Bairro denominado Vinagre.
[xix] Era proprietária da fazenda denominada do “Campo”, medidas judicialmente em 1849, tendo como confrontantes (1856) o Barão de Guaratinguetá, João José Rodrigues Ferreira, Marcelino José da Silva Borges e o Padre Manuel Teotônio de Castro (Registro de Terras – nº 06 – RT 18).
[xx] Tais informações estão baseadas nas declarações do Processo de Marcação e Demarcação da Fazenda Campinho, de Dona Maria da Guia, em 1849 (Arquivo Histórico de Lorena – Fls. 44), onde aparece uma escritura de venda que o Visconde de Guaratinguetá fez, em 1848, no Campinho, ao Coronel Joaquim Honorato de Castro. Falta retroceder e encontrar a origem dessa gleba.
[xxi] Pela totalidade de informações encontradas nos documentos fica uma dúvida sobre a formação de toda a fazenda do padre, pois quando da realização do inventário do Capitão mor, aquele já possuía terras na vizinhança do pai, segundo a descrição dos confrontantes. Até o momento o enfoque foi outro.
[xxii] Quadra de cima; posterior. Quadra – medida agrária variável; no sul do Brasil equivale a 132 metros.
[xxiii] As terras com 912 (2,2 metros) braças foram avaliadas na totalidade em 8:208$000 e foram divididas também entre os demais herdeiros, entre eles, a sua irmã, Dona Maria Pereira da Guia e Azevedo. No processo judicial de demarcação de terras desta última aparece a referida informação (fls. 43). O processo foi realizado três e um ano, respectivamente, após o inventário do Capitão e da sua mulher, este ocorrido em 1849. Dona Maria da Guia foi a primeira a realizar, já que tudo, então, estava pró-indiviso (sujeito a divisão ou partilha; imóvel em comunhão).
[xxiv] Ela também pode ter herdado alguma terra do primeiro e segundo marido, respectivamente Antônio Domingues Salgueiro e Coronel José Vicente de Azevedo (pesquisa necessária). Antônio Domingues Salgueiro era irmão do Capitão Mor Manuel Pereira de Castro e, portanto, tio e sobrinha. O Coronel era português (ver Carlota Pereira de Queiroz, p. 49).
[xxv] Não sabemos se a referida parte de terras foi anexada a fazenda vendida para o Visconde de Guaratinguetá.
[xxvi] Antônia Gomes Sandim era irmã do Tenente Francisco Gomes Sandim, casada com Silvéria Inocência de Gusmão, pais de Ana Silvéria Umbelina do Espírito Santo, 1º esposa do Visconde de Guaratinguetá. Parece que aí está uma parte da origem das terras de Dona Silvéria, herdadas pelo Visconde e anexadas às terras vendidas para João Carlos Nogueira de Sá.
[xxvii] Espaço da estrada, rua, onde termina, e que acompanha o longo da casa, quinta ou tapigo.

quarta-feira, 18 de março de 2015

O Município de Roseira – Pioneiro no Povoamento das Terras de Guaratinguetá


A formação histórica dos núcleos urbanos no Vale do Paraíba foi resultado de dois pontos importantes, os quais foram: em primeiro, o processo de ocupação do território pela necessidade da busca de mão de obra indígena e pedras preciosas, acompanhando a lógica do povoamento do território paulista desde São Vicente, seguindo as picadas e velhos caminhos indígenas serra acima até chegar a São Paulo e dali rumo ao Vale do Paraíba.  E, em segundo, a fundação de três importantes vilas no século XVII: Taubaté, Pindamonhangaba e Guaratinguetá. Todas três com extenso território administrativo e judicial. Principalmente a vila de Guaratinguetá, cujos limites estendiam-se até as divisas com a Capitania do Rio de Janeiro, no Rio Piraí, Parati (no alto da serra da Bocaína) e Minas Gerais, na divisa com a vila de Baependí.   Ambos possibilitaram, dentro desta realidade, o povoamento do que hoje é considerado o Vale do Paraíba Paulista. Ou seja, a ocupação sedentária de terras devolutas em zonas de fronteira agrícolas, em direção ao Rio de Janeiro e Minas Gerais, por famílias de migrantes saídos das Vilas de São Paulo, Mogi das Cruzes e cercanias. Assim como de imigrantes portugueses, principalmente a partir da primeira metade do século XVIII, agilizada pela abertura de um Caminho Novo para o Rio de Janeiro. Num longo processo de assentamento do homem na terra pelo único meio possível: a posse legal ou não de terras, a exploração da agricultura, para a maioria, e o comércio, para os poucos que já possuíam algum pecúlio e fazer considerável fortuna. O que criou já na segunda metade do mesmo século a necessidade, por parte do governo e da população, do desmembramento desses enormes territórios cada vez mais povoados. Constituindo-se num padrão para toda a região, o qual seria a exigência de certas áreas terem um governo municipal próprio por iniciativa da população (por abaixo assinados e plebiscitos) e acatamento nem sempre imediato dos pedidos. 
Dessa forma, a vila de Guaratinguetá foi perdendo gradativamente o seu imenso território com a criação de novas vilas e cidades. O que ocorreu até a segunda metade do século XX, com a emancipação de alguns municípios, dentre eles a cidade de Roseira, em 1965, cuja história, pré-emancipação, sempre foi reconhecida como da vila de Guaratinguetá. O que causa a ilusão de que o município nunca teve uma história anterior a ser resgatada.
No entanto, o município de Roseira é um velho território de povoamento, com uma história importante na formação social, econômica e política do Vale do Paraíba. Um pioneiro no povoamento das terras das Garças Brancas. Em linhas gerais, uma velha senhora jovem.
Ainda no final do século XVII, ocorrem os primeiros assentamentos imóveis em terras do município, em continuidade ao processo de ocupação de terras devolutas a partir e próximos da vila de Pindamonhangaba, em direção a Guaratinguetá, principalmente na margem direita do Rio Paraíba, acompanhando o antigo caminho São Paulo para o Rio de Janeiro, e a encosta da Serra do Quebra Cangalhas.  Na rota da antiga Roseira Velha e do outro lado do morro, no atual Bairro do Bonfim, região do Ribeirão dos Motas, onde existiram terras férteis, propícias para a agricultura e com ligação comercial direta com o Caminho Velho[i] para Parati, principal porto para escoamento de mercadorias.
As primeiras posses legais de terras, chamadas de sesmarias[ii], solicitadas por pessoas com famílias e doadas pelo governo da Capitania de São Paulo (antigo designação do Estado), ocorreram, algumas delas, ainda no final do século XVII e começo do seguinte. Embora não se tenha data exata, apenas por informações esparsas indicando nomes que até ainda permanecem.
Das mais antigas, foram as terras ao longo dos Ribeirão dos Motas, próximo das encostas da Serra do Quebra Cangalhas (Bonfim), cuja nominação provem de um antigo costume cultural de identificar o bairro com o sobrenome da família que no local estabeleceu remotamente, como uma espécie de identificador social.  Na localidade assentaram agricultura alguns filhos de Gonçalo da Mota Bitencourt e de Catarina Páscoa de Oliveira, naturais da Ilha de São Sebastião, cujos nomes eram: Salvador da Mota de Oliveira, casado com Maria do Rêgo Barbosa, e Pedro da Mota Pais, casado com Margarida Bicudo. Deixando imensa prole, com descendência até os dias atuais. E assim também o nome do bairro, que acabou por abranger um longo trecho até desaguar no Rio Paraíba. Bem como os descendentes de Francisco Borges Rodrigues e Miguel de Goés, todos do final do século XVIII, quando ainda o Vale do Paraíba passava por uma pobreza extrema, obrigando o homem assentar-se na terra, como uma das únicas opções de sobrevivência. E o mineiro, Capitão Luiz Dias de Almeida, proprietário de légua e meia de terras de testada na parte superior do Ribeirão dos Motas, na paragem chamada Cachoeira do Mato Dentro, comprada de outros mais antigos moradores anônimos: João Siqueira, Salvador Duarte, Rita Pais e Manuel Rodrigues da Fonseca.
O bairro, nesse trecho, foi um dos que mais prosperam em termos econômicos para a Vila de Guaratinguetá, principalmente no auge da produção do café na primeira e segunda metade do século XIX, com pequenas e médias propriedades, resultado dos diversos desmembramentos das sesmarias da família Mota Pais, por herança e por venda. Era a região com o maior número de propriedades agrícolas em 1856, segundo o Registro Paroquial de Terras[iii]. Tanto que já no final do período áureo do café e mesmo posteriormente, registra-se no Bairro do Bonfim grande prosperidade, com a presença de pequeno centro comercial para atender os moradores da cercania. E uma capela para as atividades religiosas e sociais da comunidade.
No período entre 1765 e 1836, segundo o Recenseamento das Ordenanças, a população local estava constituída de brancos e grande percentual de negros e mulatos, escravos e alforriados, trabalhando com a cana de açúcar e depois o café, também em pequenos sítios que além da agricultura para a exportação, eram voltados para a cultura de subsistência das famílias ou para o comércio de venda dos excedentes, entre os vários vizinhos e proprietários.  Militarmente, no começo do século XIX, pertencia parte para a 2ª Companhia (Aparecida), e outra para a 4ª Companhia das Ordenanças (Motas) da Vila de Guaratinguetá[iv]. Ali, nas décadas de 1840-1860 formaram-se importantes propriedades: A Fazenda Santana do Morro Alto, pertencente ao Major da Guarda Nacional[v], Bento Antônio de Campos, assassinado pelos seus escravos, em 1879, assim como o pai, em 1828, no município de Cunha. Ambos senhores de grande plantel de escravos, cuja má índole foi famosa em toda a região.  A fazenda da Conceição, até hoje existente. A Santa Leopoldina, de propriedade do Barão de Taubaté. E a fazenda de José dos Santos Oliveira Velho, também assassinado em tocaia por questão de briga judicial de terras, no qual episódio foi mandante outro rico fazendeiro da localidade, Manuel José Bitencourt. Ambos sepultados no Cemitério Senhor dos Passos, em Guaratinguetá.
Já no percurso da antiga Estrada Real, percorrida pelos Imperadores Dom Pedro I e Dom Pedro II, respectivamente em 1822, e na segunda metade do século XIX, nas encostas dos morros, na parte acima da dita estrada, inúmeras propriedades se formaram da mesma maneira, dando origem também ao antigo povoado de Roseira Velha, núcleo principal da comunidade até a metade do século seguinte.
Entre as importantes fazendas existem os exemplos, ao longo da estrada: A fazenda das Taipas, no também chamado bairro de Pirapitingui, que pertenceu ao Capitão Manuel Pereira de Barros e sua esposa, Francisca da Cunha Bueno, pais do Major Vitoriano Pereira de Barros, grande benfeitor de Roseira, que nas mesmas terras recebeu o Conde D’Eu, com uma história curiosa sobre o comportamento social dos fazendeiros na época. A fazenda Roseira, de propriedade de Máximo Monteiro dos Santos, casado com Benedita Francisca dos Santos. Nela a terra era cuidada pelo serviço de 21 escravos. A Fazenda Boa Vista pertencente a João Galvão de França e sua mulher, Dona Gertrudes Guimarães França, da mesma família da fazenda do Morro Vermelho, na entrada de Guaratinguetá, cuja sede, durante muitos anos, esteve em posse do saudoso Professor José Luiz Pasin e hoje abriga a Faculdade de Roseira – Faro.  E, por último, a Fazenda Veloso, de propriedade de Antônio Jacinto Guimarães e sua esposa, Dona Francisca Lescura França Guimarães.
Semelhante progresso econômico ocorreu nas imediações próximas do Rio Paraíba, atual Bairro de Pedro Lemes, limítrofe ao bairro do Itaguaçú, em Aparecida, cujo terreno fora fértil para o plantio do arroz. Ali recebeu, por volta da década de 1730, uma grande sesmaria o Capitão Amaro Lobo de Oliveira, residente na vila de Jacareí, que deixou grande descendência em Aparecida e em Guaratinguetá. Nela produzia seu sustento e tinha um engenho de cana para fabrico do açúcar e de aguardente.
Foram, portanto, por razão dessas propriedades, pioneiras glebas de terras, povoadas no século XVII e XVIII, que surgiu o município de Roseira, que se pode seguramente dizer que foi baluarte na manutenção do desenvolvimento da região de Guaratinguetá.
REFERÊNCIAS

Bibliografia

ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO.  Sesmarias – 1720-1736.  São Paulo/Edição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1937.

MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de.  Os Galvão de França no Povoamento de Santo Antônio de Guaratinguetá.  3. ed. São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1993.

SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA.  Repertório de Sesmarias.  São Paulo, 1994. Ed. fac-similar.

Fontes Primárias

ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Recenseamento das Ordenanças de Guaratinguetá – 1765-1836.

ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Registro de Terras de Guaratinguetá – 1856.

MUSEU FREI GALVÃO/ARQUIVO JUDICIÁRIO.  Inventários e Testamentos do 1º Ofício de Guaratinguetá – 1710-1962.

Imagem: Roseira Velha - Desenho de Tom Maia.


[i] Designação da antiga rota de Guaratinguetá para Parati, passando pela Vila de Cunha. Muita utilizada durante o período do ouro nas Minas Gerais. Daquela cidade portuária o ouro era transportado em navios para o Rio de Janeiro, e daí para Portugal. Foi, aos poucos, perdendo sua importância econômica com a abertura do Caminho Novo (antigo traçado de parte da Rodovia Rio-São Paulo, passando pelas cidades históricas do Vale do Paraíba).
[ii] Sesmarias eram porções de terras de tamanho variado, geralmente de meia légua de testada e uma de fundos, doadas pelo governo da Capitania de São Paulo para famílias que tinham pretensões de estabelecer benfeitorias e nela fazer produzir economicamente. Na maioria das vezes, eram solicitadas pelos interessados com possibilidade mínima de mantê-las produtivas. Ou compradas a outros e confirmadas por documento expedido pelo mesmo governo. Tendo o prazo de dois anos para medir e demarcar, com prejuízo de perder em caso de omissão.
[iii] Série documental existente por força da Lei de Terras promulgada em 1850, para que todos os proprietários pudessem declarar e legitimar a posse de suas terras. Era lavrada, em cada vila, pelo vigário da paróquia. Tornou-se documento comprobatório de terras utilizado até os dias atuais. Possui informações sobre tamanho da propriedade, tipo de aquisição, antigos proprietários e divisas.
[iv] As Companhias das Ordenanças (soldados) foram criadas em 1765, pelo Governador da Capitania de São Paulo, Morgado de Mateus, com o objetivo de recensear a população para fins de convocação militar de defesa do território e existiram até 1836. Cada companhia, geralmente representava um ou mais bairros da vila.  E com o passar dos anos passou a ter função exclusivamente econômica, trazendo inúmeras informações de cunho social, econômico, político e demográfico. As famílias eram recenseadas por fógos (domicílios), designando suas funções e sua produtividade a cada ano.
[v] Corporação militar criada em 1831, substituindo as Ordenanças, cujas funções variaram de acordo com o tempo, originalmente como corpo policial de defesa. Com o decorrer dos anos tornou-se símbolo de poder e mandonismo político, principalmente durante o Segundo Reinado. Das suas fileiras é que se originaram os antigos coronéis da política, com seus redutos eleitorais. Até pouco mais de meio século ainda existentes.

terça-feira, 10 de março de 2015

O Brasil Sob o Olhar de um Contrabandista


Acabo de ler o relato do viajante inglês Thomas Lindley, intitulado “Narrativa de uma Viagem ao Brasil”. Não é um romance, mas muito mais um documento histórico revestido de grande importância, assim como de tantos outros homens estrangeiros que visitaram o Brasil ao longo da sua existência. Muito menos é o mais utilizado e festejado dos relatos acerca do país, se comparado a Jean-Baptiste Debret e tantos outros. Ele é, acima de tudo, um relato do fim colonial brasileiro e algo substancial em termos de descrição do olhar europeu, diferindo, sobremodo, de outros vindos posteriormente.
É por acaso um diário do cotidiano dos homens, do seu governo, e dos seus costumes, embora sem a carga analítica da “Viagem Pitoresca Através do Brasil”, de João Maurício Rugendas.
Enquanto outros se detêm na descrição quase puramente física dos locais visitados, Thomas Lindley registra aspectos sociais importantíssimos para o historiador, de um período ainda pouco estudado e compreendido. Qual é o que antecede em alguns anos a chegada da Família Imperial ao Brasil, precisamente entre os anos de 1802-1803. A realidade de um país ainda governado por Vice-Reis e por Capitães-generais das Capitanias, permeado pelos interesses pelo público a favor do privado. Numa terra que prospera uma burocracia pessoal de favores, onde as decisões nem sempre eram as de Portugal.
A obra descreve o cotidiano do contrabandista, negociante e aventureiro fracassado de várias colônias, Thomas Lindley, enquanto prisioneiro em cárceres de Porto Seguro e Salvador, na Bahia, o qual foi feito prisioneiro quando desembarcou para reparos no seu brigue (não tinha finanças suficientes para pagar) e para consolidar certas negociatas com as autoridades ali estabelecidas, como no caso, com o Ouvidor Geral, seus parentes e outras autoridades.  Sem notícias dos inúmeros requerimentos encaminhados para as autoridades residentes e para Portugal, foi obrigado a ficar e, como desenlace, arquiteta sua fuga junto a amigos da mesma natureza e deixa o Brasil após longa residência forçada.
Trata-se de uma obra, classificada por alguns autores, como resultado do olhar de um homem de negócios, de caráter depreciativo, propício a comunicar má impressão sobre o país. Embora de agradável leitura e com algum espírito de exatidão e certa imparcialidade. E mesmo discordante em comparação a outros que visitaram o país na mesma época. Como o caso do príncipe Maximiliano de Neuwied, cuja impressão foi a de uma colônia onde não mais existiam tantos abusos, costumes ridículos, hábitos antiquados e discordantes do espírito do período, como os observados pelo negociante Lindley. Diferentemente do que observou Lindley, entre outras coisas. Entre eles, o horário das refeições, durante as quais as pessoas do maior respeito e autoridade deixavam os talheres de lado para saborear a comida com as mãos (LINDLEY, 63: 1969).
Impressa em 1805 e depois 1806 (edição francesa e alemã), a obra é o rastro e o fio para pensar as várias partes do Brasil no mesmo período para uma pesquisa reflexiva sobre a maneira de viver na colônia.  Notadamente temáticas para o convívio social da população do Vale do Paraíba, que em certos estudos já foram esmiuçados.
Entre os destaques: a temática da morte, a extrema unção, o cerimonial de sepultamento; roupas e hábitos de vestir; dieta e alimentação; a conduta dos militares e a justiça; o delicioso costume de “arrancar piolhos”; a saúde pela epidemia generalizada da sarna; modos de plantio da mandioca, a medicina pelo método da sangria e a varíola sempre constantes nas partes do país; descrição das prisões, a mercê da medalha da Ordem de Cristo e os santinhos de proteção; usos e costumes das mulheres; feitiços, rezas e mandingas; os embustes da justiça; as missas pagas, o latim e os jesuítas; as relações sociais do empregado branco e o patrão; os músicos negros, o tramites do processo judicial, o comércio ilegal de alguns produtos; o comportamento dos soldados militares; as festas religiosas; penas de traição; e a literatura do período. Entre tantos outros temas que se constituem pontos de partida para pesquisa na região do Vale do Paraíba. E que os documentos, em série principalmente podem trazer ao crivo do historiador para analisar os aspectos sociais, econômicos e políticos. 

quarta-feira, 4 de março de 2015

Gênese da Primitiva Capela de Aparecida

A Igreja de Nossa Senhora Aparecida representa um símbolo perpétuo da essência histórica do Brasil desde os primórdios da colonização portuguesa. Representa as diversas fases do desenvolvimento econômico, social e político do país. E acima de tudo denota a forte influência do catolicismo no modo de pensar e agir da população, com as tonalidades do sacro e do profano convivendo juntos numa dinâmica contínua de transformações. Ela é o microcosmo profundo da história brasileira.  Onde a vida se fez de maneira imperceptível aos olhos dos historiadores e das pessoas comuns. Com conflitos, acomodações, amores, paixões, discórdias e, acima tudo, partilha de inúmeros e diferentes interesses.
Na primeira fase, de origem e construção, ela já nasce representando certa inversão de motivos pelos quais surgiu.  Diferindo das demais e tradicionais capelas espalhadas por todo o país, eretas a partir de um motivo político específico: da criação jurídica e administrativa de vilas e cidades, no qual o templo religioso desempenhava papel fundamental na congregação de pessoas através do exercício e desenvolvimento do espírito cristão. 
Sua construção derivou de um plano místico e sagrado pré-existente, dado pela fé nas crenças e nos ensinamentos da Igreja Romana estabelecida no Brasil. E disseminada por agentes coloniais portugueses com intuito de evangelizar e catequizar a população branca pobre, indígena e negra, dentro dos preceitos preconizados pelo Concílio de Trento. Alimentado pela forte devoção nos santos e na Santíssima Trindade. E, sobretudo pelo encontro de uma imagem (1717) atribuída como sendo da Virgem Maria, Mãe de Deus, Nossa Senhora. Semelhante a tantos outros ícones existentes na tradição artística nacional (terracota), em suas diversas designações (Nossa Senhora do Bom Sucesso, Nossa Senhora da Conceição e outras).
Dá-se a partir do encontro da imagem no fundo do rio e depois o seu resgate inusitado, e daí o milagre que se constituiu: a pesca abundante de peixes, num ambiente colonial caracterizado por extrema pobreza. E posteriormente pela devoção cada vez maior diante de outros milagres acontecidos. Obrigando as autoridades civis e eclesiásticas a constituir orago e altar próprios, sem embora constituir em núcleo populacional independente da vila de Guaratinguetá, no qual o território estava incluído as terras doadas para a edificação no final da metade do século XVIII. 
E sua importância, nesse período, se concretiza pelo aspecto religioso do sacrifício e da glorificação dos fiéis peregrinos por sua localização no alto do morro, visível e alcançável. Em cujo cume o homem comum e sofrido estava em plena comunhão com a “Corte do Céu” e com seus santos e anjos. Alcançando graças, pagando promessas e renovando sua crença na ajuda por uma vida melhor.
Bem como na semelhança que traz com tantas outras histórias capelas.  No florescimento de um núcleo urbano rarefeito, em cujo entorno surgiram construções irradiadoras de povoamento e constituição de outros bairros. Desempenhando um papel de estruturação das relações social, econômico e político, refletidas nos séculos seguintes com a simbiose entre o sacro e o profano para dela se retirar proveito pela via da fé pura e simplista. 
No decorrer dos outros séculos, a situação mantêm-se em parte, mas tornar-se uma realidade bem mais do que religiosa.
Houve o interesse da partilha econômica que o fenômeno religioso e a peregrinação dos fiéis trouxeram para o entorno e para as áreas situadas nas rotas de acesso ao templo.
Com a doação do patrimônio para a constituição das “terras da Santa”, principalmente por Margarida Nunes Rangel (morro dos Coqueiros e ruas Monte Carmelo e Oliveira Braga) e Lourenço de Sá (nas cercanias da atual Rua Barão do Rio Branco) grande parte foi arrendada por pequenos sitiantes e agricultores, mediante pagamentos dos foros (aluguel), procedimento que durou por mais de cem anos.
Nesses locais foram construídas casas de residência, pensões, casas de comércio, principalmente no grande praça fronteira, o que movimentou certo comércio incipiente no local para atender o número cada vez maior de fiéis, principalmente na Estrada Geral para São Paulo, que foi rota de tropas, de viajantes e migrantes para outras partes do país. E isso gerou choque de interesses entre a igreja, os aforados e proprietários de terras limítrofes nas intenções de exploração. Sendo inúmeros os casos de briga e inimizades.
Afora os interesses políticos intervindo na administração dos bens da capela, entre o público e o privado, graças, notadamente ao regime do Padroado instaurado no país ainda no período colonial, quando não havia a separação entre a Igreja e o Estado no que toca a administração.
E muito tempo depois outros conflitos entre os seculares, os civis, e a Congregação Redentorista, que via na administração algo de suspeito e não muito bem conduzido.
Mas isto é outra matéria a respeito das influências da capela e igreja no morro das Pitas e no seu entorno em toda a história.