domingo, 29 de agosto de 2010

Joaquim Nabuco Essencial

O conjunto de escritos de Joaquim Nabuco é resultado de uma vida intensa e do olhar definido sobre aspectos importantes da história do país na segunda metade do século XIX. Mas, são obras pouco difundidas e, consequentemente, desconhecidas do grande público. Com exceção de “Minha Formação” e “Abolicionismo”, outros escritos ficaram restritos ao público acadêmico. E, que agora, em parte, estão acessíveis por bom preço e poderão servir de leitura atenta para historiadores e leigos com o lançamento da obra “Joaquim Nabuco Essencial”, pertencente ao selo Companhia das Letras/Penguin, sob a coordenação do historiador pernambucano Evaldo Cabral de Melo, com introdução, notas e cronologia.
Joaquim Nabuco foi um dos grandes símbolos brasileiros da luta pela abolição dos escravos e da diplomacia brasileira. Serviu cargos consulares em diversos países da Europa e o primeiro embaixador brasileiro em Washington, além de ter sido o responsável pela defesa do território nacional na questão de fronteiras com a Guiana Inglesa, ocasião em que elaborou um estudo pormenorizado sobre o assunto.
Na obra recém lançada divide-se em dois eixos principais: Textos Abolicionistas e Textos Políticos e Historiográficos. No primeiro eixo o leitor poderá ler Massangana; O Abolicionismo; Campanha Abolicionista no Recife, 1884; Dois Opúsculos; Discursos Parlamentares. E, em textos Políticos e Historiográficos: Balmaceda; a Intervenção Estrangeira, Um Estadista do Império e Conferências nos Estados Unidos.
Vale conhecer, principalmente por abranger os períodos do Império e da República.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Honoré de Balzac e o Vale do Paraíba

Em 18 de agosto de 1850 morria o escritor francês e imortal da literatura universal Honoré de Balzac. E para quem conhece parte de sua obra, não poderia deixar de lembrar a data e escrever algumas linhas sobre um gênio que ousou dedicar a sua vida para a literatura. Homem que sofreu atribulações no decorrer da vida e mesmo assim construiu uma obra gigantesca, incomparável e única.
Inúmeros foram os escritores e intelectuais que reconheceram ter aprendido muito mais sobre a história da França em seus livros do que em qualquer outra obra.
Balzac construiu por romances uma história da sociedade francesa do final do século XVIII e XIX, através de incontáveis personagens e temas, que ele próprio intitulou de “A Comédia Humana”. Um retrato social do país percorrendo principalmente pessoas socialmente bem colocadas, mas também anônimos e coadjuvantes, expressando ideias, ideais e psicologia. Parece não haver comparativos nesse campo e isso faz lembrar o quanto a literatura é importante para a história, por trazer no seu bojo a vida em seu cotidiano. Guardada as devidas proporções e não entrando em méritos de discussão de comparações pontuais sobre a questão narrativa ou as maneiras diferenciadas de se construir textos históricos e literários, o conjunto da obra de Balzac faz pensar sobre o elemento humano enquanto agente da história, podendo dele extrair incontáveis sugestões de pesquisa histórica para a região do Vale do Paraíba, seja em fontes oficiais ou na literatura, como, por exemplo, no último caso, Monteiro Lobato, Waldomiro Silveira, Cassiano Ricardo e, mesmo na música, como Dilermando Reis, Bonfiglio de Oliveira e tantos outros.
Todos trazem marcas da história, reflexos de pensamento de época, maneiras de agir e sentir, relacionamentos amorosos, conflitos cotidianos de vizinhos e outros acontecimentos, que muito significam para a construção histórica.
O caso do Vale do Paraíba, nesses aspectos, se constitui em riqueza ímpar, por sua antiguidade, cronologicamente do XVI ao XX, de personagens múltiplos, óbvios e esquecidos. Pautando em Balzac, por sua multiplicidade de homens e mulheres, vivendo à margem da história, surgem as perguntas, onde estarão os índios, com suas tabas e costumes?; o que seria o bandeirante valeparaibano?; qual seria o ideal de vida do sitiante, da prostituta, do seleiro, do carpinteiro? Como se dava na realidade o relacionamento entre eles? E o que dizer das mulheres solteiras com filhas, sendo de famílias conhecidas como tradicionais? Que atitudes pautava o senso comum diante de fatos escandalosos no seio das famílias? Existiriam rejeições, aceitações e acomodações? Hoje meu inimigo, amanhã, meu amigo, laços de parentesco ora dissociados, ora acoplados as conveniências de cada conflito. E a grande massa de agricultores, qual seria sua visão de mundo, mesmo sendo eles pertencentes ao quadro dos iletrados? E os operários, os fazendeiros falidos com famílias? Onde estará a grande massa da história no Vale do Paraíba?
Estão nos escritos particulares perdidos no baú das famílias, nos processos de crime, briga de terras, execuções de hipotecas, reclamações trabalhistas, na cultura oral não resgatada, enfim, em documentos que não pegamos. Neles, as vozes dos anônimos falam e deixa perceber o quanto do cotidiano do Vale ainda não se conhece.
Nos 160 anos da morte de Balzac, sua obra literária ensina ao historiador o olhar diferente, ousado, para buscar no conjunto as pequenas partes que compõe o significado das relações esquecidas. E nos diz que a história do Vale precisa de um novo pensamento e uma nova escrita.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Tema para o Simpósio de História do Vale do Paraíba - Nossa Proposta foi Vencedora

A documentação do Vale do Paraíba sempre foi uma preocupação em minha experiência de vinte e cinco anos trabalhando com pesquisa histórica. Primeiro por conhecer de perto a riqueza nela contida; em segundo, por ver a situação de conservação e guarda dos acervos da região; em terceiro, por saber que minimamente foi utilizada para o aprimoramento do conhecimento histórico na região.
Partindo dessas premissas é que propus no último dia 14 de agosto, em São Luiz do Paratinga, o tema “Documentação, Pesquisa e Educação: Um Novo Pensamento para a História do Vale do Paraíba”, que foi aprovado e que será discutido no próximo Simpósio de História do Vale do Paraíba, no Centro Salesiano de Lorena, sob a batuta do Instituto de Estudos Valeparaibanos.
Em todos esses anos, poucos foram os historiadores que renovaram a historiografia valeparaibana por meio de documentos inéditos. Poucas foram as medidas de preservação colocadas em prática. A falta de incentivo por parte das academias e das universidades, e o precário ensino da história e da arquivística deram margem para tais situações. A região está ilhada, necessitando urgentemente viabilizar projetos de conservação, guarda e elaboração de instrumentos de pesquisa capaz de colocar a região no rol de desenvolvimento alcançado por outras localidades do país, para, assim, acompanhar as novas tendências historiográficas em pauta nos mais importantes cursos de pós-graduação. O Vale do Paraíba é uma das mais antigas regiões de São Paulo e, portanto, com um patrimônio antigo a ser preservado. E, na onda de preservação do meio ambiente e da cultural imaterial, ficaram esquecidos os arquivos e os documentos.
E, para tanto, é adequado colocar em pauta três grandes eixos importantes para o tema: a conservação e divulgação das fontes documentais, a pesquisa histórica na região, educação e pesquisa histórica na construção do conhecimento e da cidadania.
O primeiro, pela situação de muitos arquivos, particulares, institucionais ou governamentais, estarem em condições precárias de guarda e conservação, por falta de conhecimento, informação e gestão adequada. São situações que demandam projetos técnicos elaborados por profissionais de diversas áreas e, portanto, orçamentos específicos e de alto custo; o que obriga a recorrer ao incentivo cultural, por vezes, complicados, burocráticos e desconhecidos, por grande parte dos dirigentes e funcionários detentores de acervos. A proposta seria colocar em pauta as diferentes demandas existentes no setor, desde as configurações técnicas de abrigar, conservar e divulgar, até as questões de ordem burocrática técnica para elaboração de projetos e captação de verbas, congregando elementos das esferas governamentais, acadêmicas (gestores, professores e alunos), pesquisadores, e o mais importante, as comunidades onde existem acervos, pois a principal meta da preservação e divulgação de um patrimônio advém do conhecimento de sua importância por parte da população.
O segundo eixo, a pesquisa histórica no Vale do Paraíba, se reveste na intenção de criar novos mecanismos de incentivo à pesquisa e ao conhecimento das fontes existentes, bem como a contínua prática e exercício da profissão de historiador, principalmente na seara acadêmica, com o fim de escrever, reescrever e pensar a região, de maneira que seja aceita e reconhecida de qualidade e de superior contribuição para o conhecimento. Dentro destes pressupostos, entra em discussão, entre tantos itens, o ensino da pesquisa histórica nas academias da região, a prática de conhecimentos teóricos obtidos na graduação sob a perspectiva de estágios em arquivos; leitura e interpretação de documentos; continuidade dos trabalhos de conclusão de curso (TCC); iniciação científica; e encaminhamento, através de cotas, de alunos de faculdades particulares regionais para os cursos de pós-graduação das grandes universidades brasileiras, com temáticas que coloque em pauta o Vale do Paraíba. Formação de grupos de estudos continuados seja dentro ou fora das universidades, incentivados por entidades como a FAPESP, CNPq e outras.
O terceiro e último eixo, a questão fundamental do ensino da história nas escolas particulares e públicas na região, tendo em vista a valorização do patrimônio e da cidadania através do estudo histórico, aplicando para tanto, propostas que transformem a pesquisa histórica em conhecimentos disseminados para a comunidade pela via da educação na fase de formação do individuo. Projetos que possibilitem trabalhar com documentos em salas de aula, de maneira lúdica, onde se deve discutir temas que despertem a busca do conhecimento pela pesquisa.
Assim, quero crer que as possibilidades de mudança estão abertas e todas as propostas para elaboração de um simpósio de qualidade serão bem aceitas. Que os responsáveis pela organização do próximo simpósio do IEV estejam atentos para as ideias aqui colocadas como de outras que virão. Vamos continuar com o tema.
Agradeço o apoio do Professor Nelson Pesciotta, Presidente do IEV; Professor Diego Amaro de Almeida; alunos, ex-alunos e professores de História da Unisal, e a todos os presentes na Assembléia de aprovação do tema.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Revendo São Luiz do Paraitinga

O último dia do Simpósio de História do Vale do Paraíba-2010 teve lugar em São Luiz do Paraitinga-SP, onde tivemos a oportunidade de constatar a força dos moradores daquela cidade diante da calamidade ocorrida em janeiro último, quando parte da área urbana ficou submersa pelas águas do Rio Paraitinga.
Contando com ajuda de diversas localidades e de vários órgãos de preservação a cidade está renascendo com força renovada e o seu símbolo maior, os casarões do século XIX, continuam, em parte, de pé, e os que caíram serão reconstruídos.
Mas o maior patrimônio, que é a sua gente, continua a mostrar a sensibilidade, a hospitalidade e a simplicidade costumeiras, mantendo a energia de sua raça e a tradição imaterial única e importante na região, como símbolo de um povo. Como tivemos a oportunidade de ver e ouvir através do cordel do Ditão, artista e morador na cidade: “caíram as casas, mas o povo não esmoreceu. Passou e agora estamos firmes para continuar a cidade.
Todos estão de parabéns por retirar dos escombros a coragem para continuar viver. Viver que é a essência da história.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Fontes Primárias - Produção, Patrimônio, Conservação e Divulgação: Repensando a História do Vale - Um Tema para o Próximo Simpósio do IEV

Com o avanço da historiografia desde a década de 1970, pela produção acadêmica, revolucionando o olhar sobre a história do Brasil, a importância das fontes primárias teve novo vigor, seja para novas interpretações ou para sua conservação como patrimônio.
Os principais historiadores, como agentes do pensamento histórico e, ao mesmo tempo, como difusores do conhecimento, seja nas salas de aula ou em grupos de pesquisas, contribuíram fundamentalmente para que houvesse uma revisão de conceitos e práticas na escrita da história, aplicando métodos e teorias que deram abertura e dinamismo ao diálogo com documentos considerados tradicionais e positivistas.
Tomando exemplos de autores franceses, americanos, ingleses, historiadores, economistas, antropólogos e sociólogos reinvestiram em temas já estudados e retiraram das fontes escritas verdades até então escondidas no submundo das grandes estruturas, fazendo ver para a comunidade científica que autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, tinham razão ao valorizar o uso de fontes escritas na elaboração da história. O que gerou, consequentemente, liberdade de ação para pensar nas múltiplas e complexas facetas da formação brasileira, revolucionando, desse modo, a maneira de valorizar o documento, analisar suas formas e escrever sobre temas consolidados que não correspondiam com a realidade histórica. A cada retorno ao mesmo documento ou a outros complementares ao tema que investigavam, outros links se abriram e novas propostas de pesquisa surgiram no cenário acadêmico, realçando a importância das fontes primárias sob outro prisma e, assim, a necessidade da releitura, da conservação, divulgação desse patrimônio.
Atualmente, as grandes universidades têm produzido muito dentro dessa perspectiva, principalmente a USP, a UFF, a UFRJ, a Unicamp e tantas outras. Nunca se produziu tanto na história do Brasil, sejam temas gerais ou regionalistas. Os protagonistas saíram a campo em busca de arquivos em regiões interioranas e os resultados foram estudos de caráter regional que deram dinamismo ao mundo da economia, da política e da sociedade em diversas localidades e momentos da história. As grandes editoras do país, mesmo as médias ou menores, tem dado ênfase em publicar os resultados dessa nova fase. E, agora, estão interessados no Vale do Paraíba, a academia, os professores e as editoras.
E nós, o que estamos fazendo? Onde nos encontramos? Talvez seja injusto dizer – não acompanhamos a dinâmica produção histórica dos últimos 30 anos. Não exploramos o nosso patrimônio documental, não o colocamos no patamar devido. Estamos perdendo o bonde da história. Estamos deixando passar a oportunidade de colocar no cenário brasileiro a região e os nossos pesquisadores.
O vale é rico em história, por ser local antigo e ligado aos primeiros tempos da colonização e a documentação mostra a multiplicidade de caminhos para revisitar, escrever e reescrever a nossa história.
Não produzimos na academia ou fora dela; não conservamos e não divulgamos; não socializamos o conhecimento do Vale do Paraíba e de seu patrimônio. Tudo individual, doméstico, difícil.
Está na hora de pensar e colocar em prática as inúmeras possibilidades que a documentação escrita pode trazer seja para o público acadêmico, para especialistas de outras áreas, para alunos, ou para o homem valeparaibano.
A região não foi somente o café, luxo, o escravo e o fazendeiro. Foi muito mais. Um mais que desconhecemos e, portanto, não entendemos e não preservamos.
E a proposta é redirecionar projetos que modifique a situação de marasmo que se encontra a documentação e a pesquisa no Vale do Paraíba, abrindo a partir daí, possibilidades de socialização do conhecimento através da conservação e divulgação das fontes escritas. O documento não está em si apenas, mas no diálogo que proporcionarmos a ele e vice-versa.
Para o próximo Simpósio de História do Vale do Paraíba, que se concretize esse tema, para assim, abrirmos temas correlatos ao assunto. E que seja realizado em Guaratinguetá, uma das mais antigas vilas da região.

sábado, 7 de agosto de 2010

As Roças de Bento Rodrigues Caldeira – Século XVII

O povoamento do atual município de Lorena está ligado ao caminho para as Minas Gerais, ao aprisionamento de índios, mas, sobretudo pela existência de extensas áreas de fronteira comercial e agrícola, que contribuiu para o estabelecimento de famílias nessas áreas, onde existiram atividades econômicas concomitantes. A primeira, de necessidade primária, que foi a utilização da terra para sobrevivência, por aqueles que não possuíam cabedais suficientes para expedições ao sertão dos minérios; a segunda, em função da estratégica localização no caminho para as Minas Gerais, que possibilitou a formação de um estreito relacionamento socioeconômico intra-regional por intermédio de redes de crédito, abastecimento e transporte de mercadorias.
Portanto, o povoamento da região está ligado mais ao circuito enunciado do que aos grandes empreendimentos bandeirantes para aprisionamento de índios ou unicamente mineração, mas por motivos ligados entre si que configuram uma realidade histórica distinta e complexa vida social e econômica. Havia possibilidades de ascensão, mesmo que fosse por uma vida sedentária. Assim, como existiam homens dispostos ao espírito de aventura, mudando de área através de bandeiras ou por iniciativa própria, levando consigo suas famílias, também existiam homens que fizeram o verdadeiro povoamento do Vale do Paraíba, recebendo sesmarias, cultivando suas roças e criando raízes por via do casamento com seus vizinhos de terra.
Como a título de exemplo referido, o possivelmente paulista Bento Rodrigues Caldeira, que se estabeleceu em terras de Lorena no final do século XVII, quando a dinâmica comercial entre Minas Gerais e o Vale do Paraíba já estava estabelecida por intermédio do comércio para abastecimento, transporte de mercadorias e ouro. Uma breve leitura do seu inventário mostra um reflexo momentâneo da situação econômica naquele período.
Suas famosas “roças”, citadas em alguns documentos, fora possivelmente adquiridas por sesmaria, devido ao seu tamanho, que em termos de área representava o tamanho padrão da doação de terras feitas pelo governo português naquele momento: quinhentas braças de terras, no porto de Pacarê (Guaipacaré), e outras duzentas braças com légua e meia de sertão em lugar não determinado pelo documento.
Ao falecer em 1712, deixando viúva Maria Ribeiro Baião e nove filhos de dois casamentos, sendo seis homens e três mulheres, Bento Rodrigues Caldeira possuía uma situação econômica favorável, mas não exclusivamente pela exploração e uso das terras, mas por outras atividades paralelas. O total dos bens, avaliados pelo Capitão Manuel da Costa Cabral e pelo Capitão Thomé Rodrigues Nogueira do Ó, alcançou o monte bruto de 10:524$360 (dez contos, quinhentos e vinte e quatro mil e trezentos e sessenta reis), quantia considerável para a época, sendo que deste, pouco mais da metade eram dívidas ativas (55%), ou seja, de pessoas que a ele deviam, e o restante, em escravos (3:132$000), gado vacum, roça lavrada, terras e trastes domésticos.
Nas terras possuía um canavial, sem denominação de quantidade, e criava gado (17 cabeças adultas, 8 bezerros e 3 novilhas), cabras (6 cabeças) e porcos (12 cabeças e 2 capados grandes); e plantava, este, avaliado em cem mil réis.
Os escravos, em número de trinta e seis, em certo sentido impressionante por não se conhecer as formas de sua utilização, estavam representados principalmente por pequenos núcleos parentais, ao contrário do que dizia a historiografia a respeito da constituição de famílias na sociedade escravista. Do total, 21 eram mulheres, em parte viúvas ou recém-nascidas e algumas órfãs. Eram negros guiné e carijó, constituídos por marido e mulher, com filhos e sem filhos, avaliados entre 10$000 réis (dez mil réis), no caso uma criança recém-nascida, e 200$000 (duzentos mil réis), homem ou mulher adultos.
Os trastes domésticos que, ao contrário do imaginário histórico prevalecente, denotam a extrema simplicidade que vivia o valeparaibano no inicio dos setecentos: uma casa de palha sem móveis e a ausência de roupas que merecessem avaliação, a exceção de um capote azul usado, avaliado em 6$000 (seis mil réis). Uma casa que parece mais abrigar apetrechos para a produção da pinga, do que local de morada, o que é corroborado pela presença de tachos de cobre, tamboladeira, caldeirinha, machado, exó e um alambique de cinquenta libras. Não se teve notícias de uma casa para os escravos. Com artigo de luxo, somente dois cordões de ouro, com 53 oitavas, avaliados em 64$200 (sessenta e quatro mil e duzentos e réis).
No setor de dívidas ativa é interessante observar que o dinheiro foi marcante como fonte de renda e crédito no período. As dívidas de Bento Rodrigues estavam espalhadas entre trinta indivíduos de localidades diversas, como Taubaté, Guaratinguetá, Rio de Janeiro, São Paulo, Lorena e no Caminho paras as Minas. Embora não exista discriminado o objeto gerador do crédito, por vezes, podia representar todo tipo de transação, agrícola ou comercial, que, em alguns casos, levava anos para saldar, passando aos herdeiros o direito de cobrar, fosse durante o processo de inventário ou posteriormente.
Assim, um estudo serial e com análise mais profunda, principalmente para a segunda metade do século XVIII, traria intermináveis respostas da vivência do homem colonial na região, percebendo que muito do que reproduzimos pode não corresponder com a realidade histórica.
Fonte: Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá. Inventário de Bento Rodrigues Caldeira, 1712.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Lembranças em Documentos: O Desatre do Bonde - 1952

São interessantes as lembranças que possuímos das histórias contadas por nossos país e avós. Muito mais ainda, são importantes, por proporcionarem curiosidade e possibilidade de pesquisa histórica nos documentos, como forma de conhecer o fato em si e as suas correlações com a época.
Sendo assim, para os vários casos que a memória registrou em flashes, podemos descobrir documentos que poderão servir de instrumento de averiguação e análise, contrapondo memória e história. Entre eles, séries documentais pouco utilizadas: processos crimes, processos do júri e processos cíveis. Principalmente os inquéritos policiais que registraram as várias faces de um mesmo acontecimento pela ótica de suas diversas testemunhas.
Seguindo tal raciocínio, é que relato, como simples ilustração, a memória sobre o acidente numa antiga linha de bondes e que foi contado por muitos e registrado nos documentos do judiciário.
Acidentes envolvendo veículos e pessoas não é um fato dos dias atuais, pois, com o advento dos meios de transportes movidos a motor ou energia, principalmente no inicio do século XX, sempre estiveram presentes no cotidiano das grandes e médias cidades do país, fossem eles de particulares ou de transporte público.
Em Guaratinguetá e Aparecida não foi diferente, principalmente por casos envolvendo os bondes que circulavam entre as duas cidades. Sendo um deles, objeto de lembrança específica de meus pais e que ocorreu em 1952 no município de Aparecida, quando, na oportunidade, um dos veículos saltou dos trilhos e chocou-se com uma casa, vitimando uma pessoa.
O acidente gerou inquérito policial na vizinha cidade de Guaratinguetá. E no processo, finalmente verifiquei corretamente como aconteceu o fato.
A linha de bondes ligando as duas cidades, naquele período, pouco antes do encerramento das suas atividades (1956), tinha sua garagem estabelecida em Guaratinguetá, na esquina das ruas Doutor Martiniano e Comendador João Galvão, saindo dali para o município vizinho, onde, segundo descreveu o saudoso poeta aparecidense Sebastião Papandréa, seguia "... pela Avenida Zezé Valadão, ganhando depois a Rua Barão do Rio Branco... subindo depois pela Rua Oliveira Braga (antiga Rua Nova), passando pela Travessa Dezessete de Dezembro (rua do antigo Cine Aparecida), para chegar ao ponto final, próximo à Farmácia Nossa Senhora Aparecida...". E retornava novamente pela Rua Oliveira Braga, refazendo o mesmo trajeto de volta para Guaratinguetá, onde na Rua Rio Branco "... exisitia uma espécie de micro-rotatória, onde os bondes cruzavam em bitolas diferentes".
Foi justamente, no cruzamento referido, ao final da descida da Rua Oliveira Braga, esquina com a Rua Barão do Rio Branco, que aconteceu, no dia 13 de janeiro de 1952, por volta das 22:30, um acidente com o Bonde nº 7, da marca “The J.O.Brill, Cos.”.
Segundo o apurado pelo inquérito policial, a causa foi a fratura e total ruptura do varão longitudinal esquerdo do bonde, que impediu a atuação da alavanca de freios, ocasionado assim a perda do sistema de segurança. O que fez com que o bonde, dirigido pelo motorneiro Cornélio de Abreu e por Francisco Moreira dos Santos (Cabo Chicão), descesse em desembalada pela Rua Oliveira Braga, indo chocar-se violentamente com uma banca de jornal, que ficou totalmente destruída, com o prédio nº 3 da Rua Barão do Rio Branco, de propriedade do espólio de Maria Cândida Borges, ocasionando sérios estragos na mesma e no Bar São Benedito localizado ao lado da referida casa, pertencente a Dona Kaio Fukuda, que entrou, logo após, com pedido de ressarcimento pelos estragos sofridos. O veículo sofreu danos na parte frontal, principalmente no painel de controle, na alavanca dos freios mecânicos, no tejadilho, na divisão da cabina, nos três primeiros bancos e nos balaustres esquerdos. Segundo o depoimento das testemunhas, havia, naquele horário, que era último, excesso de lotação, sendo uma das vítimas foi Vicente Ourique de Aguiar e outros.

Imagem: Casa atingida pelo bonde. Processo Inquerito Policial - 1952 - Primeiro Ofício. Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Uma mulher Parda e seu Testamento - Século XIX

A renovada historiografia brasileira dos últimos anos tem demonstrado que inúmeras verdades consolidadas não passam do resultado de interpretações pontuais transformadas em leis gerais.
E no universo feminino a regra não foi diferente, embora muita coisa tenha se observado nos últimos tempos.
Retornando aos documentos, os historiadores observaram uma realidade diferente para as mulheres em fins do período colonial e inicio do século XIX. E são aspectos principalmente no universo feminino de negras, pardas, crioulas e índias no Vale do Paraíba.
Notadamente encontramos muitos processos crimes envolvendo alforriados e escravos, o que em dado momento se faz interpretar que aquela camada da população somente tivesse seus direitos vistos aos olhos do dominador, quando haveria de ser pesada a pena, mas a verdade é que se nota um relacionamento social mais estreito e horizontalizado que costumávamos a ver nos livros de história.
Mulheres pardas, crioulas e índias, forras ou não, tiveram, em muitos casos, seus direitos reconhecidos na justiça, principalmente tratando-se do direito de testamento e legado de heranças, no mesmo estilo aplicado aos brancos livres.
Como forma de ilustrar e despertar para o tema, na região do Vale do Paraíba, transcrevemos o óbito e parte de seu testamento de Inácia Maria de Santana, falecida com 50 anos, em 22/10/1839, em Guaratinguetá, natural de São João Del Rey-MG e filha de pais incógnitos.

“Aos vinte e dois de outubro de mil oitocentos e trinta e nove, nesta vila, com todos os sacramentos, de idade de cinquenta anos, ao que parecia, de enfermidade interna, faleceu da vida presente Inácia Maria de Santana, natural da vila de São João Del Rey, Bispado de Mariana, parda, viúva por falecimento de Manuel Antônio de Oliveira Santos, era filha de pais incógnitos, exposta em casa de Gonçalo Garcia e Alves, foi seu corpo envolto em Hábito de São Francisco, por sim ter pedido antes de sua morte e sepultada nesta Matriz, ao pé do altar de Nossa Senhora das Dores e conduzida em caixão, acompanhada por mim e por todos os reverendos sacerdotes e coroinhas que se achavam nesta vila; se lhe cantou na rua cinco mementos e todos os reverendos sacerdotes lhe disseram missa de corpo presente; sua alma foi recomendada. Fez testamento, suas disposições quanto ao pio, são da forma seguinte: Institui por herdeiro necessário a João Nogueira da Cruz. Institui por seus testamenteiros em primeiro lugar a João Nogueira da Cruz, em segundo a Domingos José da Cruz, moradores em a Vila de Baependí, Província de Minas. Declarou que seu corpo fosse envolto com hábito da Senhora das Dores e sepultada em uma das sepulturas da Irmandade Senhora das Dores, se falecesse onde houvesse irmandade da mesma Senhora. Determinou que seu testamenteiro mandasse dizer as missas de corpo presente que pudessem ser, e fizesse o seu funeral a seu arbítrio. Declarou que seu testamenteiro mandasse dizer por sua alma, oito missas. Declarou ser sua vontade que ficasse forra e liberta a sua crioulinha Graciana. Que a crioula Maria fosse aplicada para as disposições do seu funeral. Que o mulatinho Simão e mais crioulinhas ficassem escravos do seu primeiro testamenteiro retro nomeado, durante a sua vida, ficando, outrossim, libertos e forros imediatamente depois do falecimento dele testamenteiro – seu herdeiro. E nada mais se continha quanto ao pio de que para constar mando fazer este assento que assino. O Vigário Colado Manuel da Costa Pinto.”


Imagem: Enterro de uma negra. Jean-Baptiste Debret.

Revista do IHGB disponível online

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi fundado em 1838, no Rio de Janeiro e sua trajetória é rica em acontecimentos, assim como a contribuição de seus membros. E o reflexo está na principal publicação daquele órgão, a Revista do IHGB.
O pensamento histórico do século XIX está impresso em suas páginas, através de inúmeros artigos de profissionais que não eram historiadores, o que a converte numa fonte primária por excelência. Principalmente pelas informações que traz, sobretudo, os artigos sobre o Brasil existente em arquivos europeus.
Todo acervo, desde o final do século XIX, está disponível atualmente on-line para pesquisadores e historiadores. Basta acessar a página do Instituto e fazer download.
Visite e confira: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Série Brasiliana Digitalizada

A Série Brasiliana, que temos destacado em nosso blog, na parte inferior da coluna direita, está sendo digitalizada e encontra-se disponível para consulta no Portal "Brasiliana Eletrônica".
Trata-se de um trabalho em conjunto envolvendo a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Ministério da Educação (MEC), através da Secretaria de Ensino a Distância, a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e a Fundação Universitária José Bonifácio (FUJB). Em sua primeira etapa, logrou-se disponibilizar na rede os textos completos de 20 obras selecionadas entre as 415 que compõem a antológica coleção. No início deste segundo semestre de 2010, o número de obras disponibilizadas já chega a 70. São livros que podem ser acessados na íntegra de maneira fácil e didática.
No portal, é possível realizar buscas no conteúdo através de palavras-chave e visualizar a segmentação da coleção, segundo áreas do conhecimento. A seção de história é a que possui mais títulos, um total de 23 obras. Segundo os organizadores, a idéia é que o portal se constitua "numa poderosa ferramenta de difusão e democratização de conhecimentos sobre o Brasil, fazendo chegar a amplas camadas da população um portentoso volume de informação e reflexão, até aqui restrito às paredes das bibliotecas."
Para acessar o Portal e conferir as obras: http://www.brasiliana.com.br/brasiliana/

Fonte da informação: http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/arquivo-cafe-historia-uma-1. (Acessado em 30/07/2010).

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Fazenda Conceição - Guaratinguetá-SP

A fazenda de café foi símbolo de grandeza, riqueza e decadência na economia rural brasileira. Ela expressou, guardadas as devidas proporções, o sentido social, econômico e político do período áureo do café na região do Vale do Paraíba e fluminense. O entendimento de sua dinâmica ainda tem muito para ser estudada e a micro história pode contribuir muito ao conhecer os aspectos primários de cada uma das unidades agrícolas de determinada região ou cidade.
Em Guaratinguetá, onde o café teve uma expressão muito forte, embora não tenha sido a principal produtora, diversas fazendas surgiram e tomaram corpo a partir da segunda metade do século XIX, a exemplo do bairro dos Motas onde a invasão daquele foi mais intensa, segundo constatou Lucila Herrmann. Neste formaram-se diversos núcleos de plantio da rubiácea, distribuídos em pequenos e médios sítios e, também, em fazendas de pequeno e médio porte, originados principalmente dos inúmeros desdobramentos das sesmarias concedidas no século XVIII e das várias e posteriores aquisições e anexações realizadas por herdeiros ou potenciais compradores e investidores oriundos de outras áreas do município.
A fazenda denominada Conceição foi uma dessas unidades produtoras localizada naquele bairro, nas encostas da Serra do Quebra Cangalha, no lugar denominado Bonfim, hoje município de Aparecida.
A sua origem remonta ao século XVIII, no que se refere à posse e utilização para fins de exploração agrícola comercial, período em que a documentação permitiu a identificação da área onde está localizada1. Foi ela parte integrante de uma sesmaria concedida em 1765 ao Sargento-Mór Luiz Dias de Almeida, que a solicitou por requerimento, justificando ser necessário estabelecer com sua família, escravos e animais nas terras por ele adquirida no districto da Villa de Guaratinguetá, na parte superior do ribeirão, acima da ponte da Villa em a paragem chamada cachoeira do Matto Dentro, compradas a Miguel de Góes, João Siqueira, Salvador Duarte, Rita Paes e Manuel Rodrigues da Fonseca, confrontando para a parte do norte com terras de Thomaz Pereira e para a do sul constesta na serra chamada o Quebra Cangalhas, para o poente com terras de Mathias Pires e para o Nascente com terras de Miguel de Góes (Livro 17, Fls. 33v.)2 Foi conhecida como “Sesmaria do Patrimônio”3, com légua e meia de terras de testada e o sertão que lhe pertencesse4.
O Sargento-mór Luiz Dias de Almeida, seguindo o estabelecido nas normas de concessão de Sesmaria5, efetuou a demarcação de suas terras em 1767, e ali estabeleceu um sítio em que cultivava arroz, milho e feijão (subsistência) e também a cana de açúcar6. Era ele natural de São João Del Rey, filho do Sargento-mór Pedro de Almeida de Oliveira e de Maria da Conceição e casado com Luzia da Palma de Jesus, filha do Capitão Pedro Rebouças da Palma e de sua mulher Maria do Rêgo Barbosa7. Em 1793, com sua morte, a sesmaria sofreu a primeira fragmentação, na partilha realizada entre a viúva e os filhos, e daí por diante, com a tendência de formação de pequenas propriedades, outras partes foram vendidas para alguns moradores da região e de outros bairros da Vila de Guaratinguetá, no decorrer do século XIX.
Na primeira metade do século XIX, as terras da sesmaria já estavam transformadas em pequenas e médias propriedades agrícolas8, e em 18569, a Fazenda da Conceição era parte integrante das antigas Fazendas Santa Cecília e Sertão, de propriedade de José Simões da Cunha e de sua mulher Dona Lúcia Francisca de Assis; casados em 1830 em Guaratinguetá. Ele natural de Paratí, filho de pai homônimo e de Maria Tereza do Nascimento; ela, natural de Mariana – MG, filha de Lúcio José Monteiro de Noronha (membro da Guarda de Honra do Príncipe Dom Pedro) e de Ana Felícia dos Prazeres, mineiros migrados para a região no começo do século oriundos de Itajubá10. Na propriedade o café era largamente produzido e por esta época o Bairro dos Motas tornou-se a principal localidade da Vila de Guaratinguetá em termos de produção agrícola e em transações imobiliárias, chegando mesmo a formar um pequeno núcleo de vida social instalado no local hoje denominado Bonfim, com igreja11 e pequeno comércio ao seu redor.
Em 07.05.1877, por escritura pública de partilha, José Simões da Cunha fez divisão amigável das terras com seus filhos (Livro de Notas, nº 28, Fls. 129): Capitão Joaquim Simões da Cunha, c.c. Gabriela Diniz Junqueira Simões (moradores na Vila de Areias); Maria Madalena Simões Bitencourt, c.c. José Severino de França Bitencourt (donos de terras no Bairro dos Motas, oriundas também da “Sesmaria do Patrimônio”); Antônio José Simões da Cunha e Benjamim José Simões da Cunha, c.c. Cecília de Andrade Junqueira Simões12. A cada um coube uma parte das terras assim distribuídas: a Joaquim Simões, no valor de 17:000$000; a Antônio Simões, no valor de 18:000$000; a José Severino de França Bitencourt, no valor de 11:900$000; a Benjamin José Simões da Cunha, no valor de 33:100$000, totalizando o preço de 80:000$000 (oitenta contos de réis) que representava o valor total da fazenda. Nesse período a fazenda tinha casas de vivenda, senzala, paióis para estocagem do café e terreiros de secagem.
Em seguida, um dia após a escritura de partilha, os mesmos herdeiros resolveram entre si venderem suas respectivas partes ao herdeiro Benjamin José Simões da Cunha no valor de 46:900$000 (quarenta e seis contos e novecentos mil réis), negociante de loja de fazendas (artigos de panos e outros) na vila de Guaratinguetá e comerciante matriculado no Tribunal do Comércio do Rio de Janeiro, mantendo, também, em sociedade com o sogro, Capitão Luiz Antônio Garcia, estabelecido na cidade do Piraí, província do Rio de Janeiro, uma Casa Comercial na cidade do Rio de Janeiro, a Rua da Prainha13.
A partir de então, na posse de Benjamin José Simões da Cunha, as terras herdadas e compradas dos irmãos transforma-se na Fazenda da Conceição, como é hoje conhecida. A sede luxuosa, com porão alto e assoalho artisticamente trabalhado, foi obra daquele proprietário, que pelas atividades exercidas pode construí-la ainda no auge do período do café e do comércio local (as iniciais no assoalho indicam a veracidade do fato – BJSC – Benjamin José Simões da Cunha).
Segundo a Professora Catarina Aparecida Vieira Vilela, a fazenda da Conceição possui estilo mais luxuoso que a Fazenda do Barbosa, localizada no bairro das Pedrinhas, não só pela arquitetura, mas também pelos móveis que nela existiram e que anos mais tarde foram vendidos por outra proprietária14. No inventário da esposa do proprietário (de família tradicional do Sul de Minas e oeste de São Paulo), vemos alguns desses móveis que, com certeza, no decorrer dos anos aumentou. Foram arrolados, entre outros bens, dois pianos, uma mobília de jacarandá, duas camas francesas, um lavatório grande de mármore, um espelho de oito palmos e dois pares de castiçais de prata. De uso doméstico aparece também, um aparelho de jantar de porcelana, dois aparelhos para chá e café, três pares de jarras finas e dois jogos de bandejas finas.
Entre 1877 e 1886 a fazenda e as terras pertencentes ao negociante Benjamin foi vendida a Thimóteo José Cesário de Campos, fazendeiro residente em Pindamonhangaba (falecido em 1895 e c.c. Ana Domingues de Castro, irmã do Barão de Paraitinga) e natural da Vila de Cunha, onde seu pai, Thomé Cesário de Campos, foi grande senhor de terras.
Neste período passando por alguma crise não muito bem definida, a unidade agrícola foi hipotecada para endosso de dívidas contraídas possivelmente pela decadência do café. O responsável pelo empréstimo de dinheiro foi o Comendador Luiz José da Silva Guimarães, fazendeiro abastado residente no Rio de Janeiro e casado na família do Barão de Taubaté. Segundo informações de outra escritura, somente a metade da fazenda foi colocada em garantia do valor de 60:000$000 (sessenta conto de réis)15. Possuía a totalidade de 181 alqueires e meio de “mata de milho”, com cafezais e várias outras plantações; casa de vivenda, chalet, outras edificações, paióis, máquinas de beneficiar café e outros aparelhos e instrumentos de lavoura. Ela confrontava com os seguintes fazendeiros: Barão de Romeiro, Francisco Chagas Santos, José Pereira Barbosa, Cândido Freire de Almeida, Barão de Taubaté, Francisco Joaquim Pereira, Vitoriano Moreira César, Basílio Pires de Souza, Francisco Manuel dos Santos, Dr. Manuel Domingues de Castro e Manuel Joaquim Pereira.
Em 1890, nova escritura de hipoteca é realizada e ao que consta não foi satisfeita, passando a fazenda para as mãos do referido fazendeiro, Comendador Luiz José da Silva Guimarães.
No início do século XX, em poder desse proprietário, falecido em 1913, a fazenda continuou a produzir exclusivamente café, escapando da crise do produto na região. Por ocasião do seu inventário, processado na cidade de Taubaté16, a unidade produtora possuía 114.760 pés de café plantados (avaliados no total em 21:886$500, juntamente com a terra onde estava)17, como também maquinários para beneficiar, terreiros para secagem, uma casa para negócio, casas para camaradas, tulhas etc. Além disso, uma pequena parcela da área existente eram utilizadas para a criação de animais (porcos, cavalos, capados e leitões) e uma outra parte com capoeiras destinadas ao posterior replantio de café.
Nesse tempo ainda as terras faziam divisa com os seguintes proprietários: Tenente Coronel Antônio Marques dos Santos, Manuel Marcondes Rangel, Francisco de Cerqueira Ramos, Francisco Marcondes Rangel, herdeiros do Barão de Taubaté (Fazenda Santa Leopoldina), Antônio Motta e Cia., Nicolau Leoni (Fazenda Sertãozinho), Alfredo de Paula Santos, Manuel Pereira da Silva, Marcolino dos Santos e outros.
Em 04.06.1918 a propriedade foi vendida, pelos herdeiros do Comendador, para Daniel Muller, residente em Taubaté, por escritura lavrada na cidade de Taubaté. O proprietário a manteve por pouco tempo e em 25 de outubro de 1921 celebrou uma escritura de compromisso de venda da propriedade, em toda a sua organização18, aos imigrantes russos Júlio e Jacob Drebtchinsky pela quantia de 100:000$000 (cem contos de réis), ficando a última parcela para ser paga até dezembro de 1922, quando seria transferindo o domínio e a posse aos compradores. Nesse ínterim seriam apenas administradores e depositários dos bens. Nesse intervalo, continuando a produzir café, o resultado da produção foi colocado à venda para um fazendeiro vizinho, o coronel Antônio Marques dos Santos, mas uma ação de protesto foi interposta pelo proprietário legal da fazenda, Daniel Muller, haja vista que, segundo ele, não havia possibilidade jurídica para tal, pois a venda previa apenas a venda do resultado do café colhido em 1921 que já se encontrava estocado e não os frutos pendentes para colher. O contrato ainda previa hipoteca da fazenda, mas não se sabe o certo o que aconteceu.
Em 1924, a fazenda estava hipotecada para Henry William Turner, sendo adquirida pelo dentista paulista Alberto Bresser Monteiro, casado Dona Elizabeth Ludovig Bresser Monteiro.

NOTAS

1- A tradição oral dá conta que as terras localizadas entre a Serra do Quebra Cangalha e o maciço do Jaburu foram de propriedade de um antigo ramo genealógico estabelecido em Guaratinguetá no início do século XVII, a família Mota Pais, daí o nome do bairro e do afluente que deságua no Rio Paraíba. Nenhuma referência documental foi encontrada a respeito, mas é possível a veracidade da notícia, haja vista que, neste caso, a primeira sesmaria conhecida na região tenha sido adquirida de outros, como acontecia em alguns casos conhecidos dentro do precário sistema de distribuição de terras nos séculos anteriores ao XIX.
2- Divisão de Arquivo do Estado Repertório de Sesmarias. S. Paulo, 1994 (Ed. fac-smilar), p.p. 348-349. Ao citar a compra realizada, o requerente citou a compra realizada dos antigos proprietários que, segundo foi constatado em trabalho genealógico (SILVA LEME, Luiz Gonzaga da. Genealogia Paulistana), eram descendentes da família Mota Pais, referida na nota 1. Isso corrobora que a tradição pode estar certa.
3- Em vários documentos foram encontradas esta denominação. Embora não explique a origem do nome, acredita-se que esteja ligado ao Padre Antônio Ramos Barbas que, para se ordenar, recebeu partes de terras vizinhas como patrimônio necessário para a formação eclesiástica.
4- Era muito comum naquele período doações de terras que tinham os seus limites estabelecidos dessa maneira, já que muitas delas, seja pela testada ou pelo sertão, não tinham vizinhos confrontantes ou iam até onde os olhos enxergasse. Neste caso específico, as medidas pela testada tinham vizinhos confrontantes, mas os limites do sertão atingiam os contrafortes de uma parte da Serra do Quebra Cangalha.
5- Uma das premissas para validar a posse do sesmeiro era que ele demarcasse as suas terras num prazo de dois anos a contar da data da concessão e que o Rei de Portugal a confirmasse, caso contrário perderia a titularidade, sendo, em ocasião propícia, passada a outro que cumprisse as normas estabelecidas. Embora sendo regra, muitas das vezes não era demarcada e nem confirmada, o que acarretava, em alguns casos, processos judiciais anos mais tarde, entre os descendentes ou seus sucessores.
6- Arquivo Público do Estado de São Paulo. Recenseamento das Ordenanças de Guaratinguetá para o ano de 1776 – SP. Trata-se de uma série documental única no Brasil e no mundo, abrangendo o período de 1765-1836, largamente utilizada pelos historiadores, trazendo informações fundamentais sobre a sociedade e economia da época em se considerando o seu conjunto para cada vila.
7- Instituto Genealógico Brasileiro Anuário Genealógico Latino, Vol. 4 – 1952.
8- Entre os anos de 1871-1877, segundo os Livros de Distribuição de Escrituras de Guaratinguetá (Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá), foram lavradas 88 escrituras envolvendo propriedades agrícolas no bairro dos Motas, perdendo tão somente para os negócios realizados com bens imóveis na cidade.
9- Arquivo Público do Estado de São Paulo Registro Paroquial de Terras – 1856.
10- MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. Os Galvão de França no Povoamento de Santo Antônio de Guaratinguetá 3 ed., São Paulo, Editôra da Universidade de São Paulo, 1993. p. 296 e 342.
11- A igreja do Bonfim foi construída entre os anos de 1870-1880, quando o proprietário e fazendeiro José Pereira Barbosa, português, e sua mulher, Dona Maria Marcolina de Araújo, fizeram doação de uma parte de terras para o patrimônio da capela.
12- Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá – Inventários e Testamento do 2º Ofício – Maço 14.
13- Estar matriculado regularmente como Comerciante no Tribunal do Comércio do Rio de Janeiro era sinônimo de prosperidade e de posição consolidada entre os demais. Nesse período, o comércio é um forte setor da economia local, e uma parte do lucro auferido, por vezes, financiava a agricultura comercial do café. Segundo o inventário de Dona Maria Luiza Garcia Simões da Cunha, a Casa Comercial do Rio de Janeiro havia dado lucro de 4:549$407 e da Vila de Guaratinguetá 4:500$000 (Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá – Inventários e Testamentos – 2º Ofício.)
14- Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá – Pasta Fazenda – Arquitetura Rural.
15- Tabelião do 1º Ofício de Guaratinguetá – Livro 56 – fls. 27.
16- No Museu Frei Galvão encontra-se uma Precatória expedida do Juízo da Comarca de Taubaté para Guaratinguetá pedindo a avaliação dos bens existentes no Bairro dos Motas e em Roseira. Era uma premissa jurídica, já que os bens estavam em território de outra comarca. Arquivo Memória de Guaratinguetá – Maço 180 – 1º Ofício.
17- É interessante observar que naquela época o proprietário distinguia cada cafezal com um nome que lhe fosse do agrado ou que estivesse ligado a algum fato ou nome de antigos donos ou de agregados. Na Fazenda da Conceição alguns deles eram conhecidos como: Lage, Queimada, Limeira, Gervásio, Fazendinha etc.
18- A fazenda estava sendo vendida como se diz até hoje com “porteira fechada”, ou seja, incluindo todos os bens.

Imagem: Vista Lateral da fazenda antes da reforma atual. Fotografia de Catarina Aparecida Vieira Vilela. In: Pastas Fazendas – Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá.

domingo, 25 de julho de 2010

Leitura Recomendada

A história e a literatura têm relações intrínsecas, principalmente por proporcionarem aspectos de verdades que buscamos.
O ambiente em que a literatura se forja advém do resultado da relação do autor com o seu meio, enquanto valores culturais, sociais, políticos e econômicos (história), que por sua vez reflete na criação ficcional, tendo como base principal a vivência in loco do cotidiano.
Tendo a literatura como suporte, a história sai do lugar comum do cientificismo, dando vez para lembranças amiúdes e memórias difusas, que são preteridas pelo exagerado apego e fetichismo ao documento escrito. Torna-se um importante instrumento de compreensão do mundo.
No livro de contos “No Mundo das Sinhás”, do literato Tom Maia (Ed. Santuário, 2003. 221 p.), constatamos as assertivas acima. O autor, com sensibilidade e sabedoria, mostra-nos um passado diluído e diferente dos conceituais livros de história. Sabendo ensinar, com divertimento, os valores e as crenças de uma sociedade interiorana ainda pouco conhecida em suas marcas e experiências indeléveis.
O resultado é a negação das grandes estruturas e processos históricos, colocando-nos diante da história do cotidiano e da micro-história para a compreensão do passado, embasada em rica literatura narrativa, a exemplo de alguns grandes contos clássicos da literatura francesa muito bem utilizados pelo historiador Robert Darnton para o resgate da história cultural da França.
“No Mundo das Sinhás” o leitor leigo, o profissional da história e os críticos podem seguir vidas e compará-las, tecendo, assim, o pano de fundo de determinadas realidades. Cada atitude dos seus personagens traz consigo a experiência e a linguagem de um mundo que, ao mesmo tempo, é incompreensível, mas não diferente do nosso.
Como privilegiado espectador e ouvinte dos acontecimentos de outrora, utiliza o seu hábil senso literário para narrar particularidades que tem raízes profundas na história brasileira. Usa a ficção para despertar nos leitores a argúcia e a perspicácia necessárias para o conhecimento do passado, assim como num jogo de xadrez, onde é preciso estar atento aos pequenos e insignificantes movimentos.
Um livro saboroso, sério e inteligente, que poucos ousaram fazer, mostrando o quanto a literatura é importante para a história do Vale do Paraíba.

Lançamento - História e Genealogia

Foi lançada no último dia 28 de maio, na Câmara Municipal de Taubaté, a obra “Os Oliveira Costa de Taubaté”, e autoria de Carmo de Chagas. A obra teve o apoio da Empresa das Artes, Vila Criativa, Instituto de Estudos Valeparaibanos, Academia Taubateana de Letras e da Câmara Municipal de Taubaté.
Vale à pena conferir a saga de uma família valeparaibana que deixou sua marca na construção da sociedade taubateana.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Obra em três volumes sobre a História de Aparecida

Tudo tem um começo. E não seria estranho afirmar que a história poderia ter um inicio quando referida como obra publicada, principalmente aquelas que possuem caráter regional ou retrata uma comunidade definida.
Penso que obras regionais, muitas delas memorialistas ou de caráter positivista , devem obter, por parte do público especializado, um tratamento qualificado, porque representam intróito fundamental para a grande massa leiga que desconhece a história da sua própria comunidade.
É através do elementar e factual que nasce a curiosidade e, posteriormente, o aprofundamento. Mesmo para o público intelectual, que tem nessas obras informação que possibilita a descoberta de indícios que pode representar a base de uma teoria.
Tenho lembranças das inúmeras publicações históricas, regionais ou não, colocadas no mercado editorial durante as décadas de 1960 e 1970, que serviram de estímulo para gostar cada vez mais da pesquisa histórica. Foi delas que obtive subsídios para formar um pensamento mais apurado acerca da minha cidade e região.
E foi com informação e formação que a partir delas é que atualmente considero fundamental divulgar e valorizar obras iniciativas da história de um município, dentre ela, particularmente a obra, em três volumes, sobre a história de Aparecida, de autoria do Professor Benedito Lourenço Barbosa, intitulada “Nossas Origens – Três Séculos de História de Aparecida-SP”. Que pode ser considerada obra pioneira, por trazer informações inéditas sobre a formação e o desenvolvimento da cidade através do tempo. Isto, porque, anteriormente as publicações sobre a cidade sempre estiveram atreladas ao aspecto religioso, contando a história do encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida, em 1717, e o conseqüente desenvolvimento das atividades oriundas daquele achado. Portanto, uma obra geral e didática, que serve como estímulo para historiadores e pesquisadores, mas, sobretudo, para a rede pública de ensino, como parte integrante de um projeto que valorizasse o conhecimento da terra.
O primeiro volume traz a história do município a partir de 1645, quando teve inicio o povoamento de Guaratinguetá, chegando a 1745, ano da construção da primitiva capela de Aparecida em terreno doado por Margarida Nunes Rangel e outros moradores no entorno do morro dos Coqueiros; além de trazer informações genealógicas e transcrição de documentos.
No segundo volume, o leitor pode conhecer a história a partir de 1745, até a criação do Distrito, em 1891, destacando a história da antiga capela, vigários e capelães no período, a estação ferroviária, a economia e a educação no município de Guaratinguetá, os primeiros movimentos para a emancipação e as principais famílias.
E, no terceiro e último volume, fatos e pessoas desde a criação do Distrito até o Bicentenário da capela, ocorrido em 1945, destacando aspectos dos efeitos da urbanização na localidade, a política e o processo de emancipação administrativa, em 1928.
Um trabalho de esforço hercúleo durante mais de três anos em arquivos públicos, entrevistando e identificando fatos e pessoas, valendo o resultado.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Literatura Regionalista – Waldomiro da Silveira

O documento oficial produzido por inúmeras instâncias jurídicas e administrativas ao longo da história do Brasil não reflete a realidade ampla da sociedade. Mesmo porque, tanto o documento, como o historiador que o manipula, não consegue chegar ao real vivido. E, portanto, existem aproximações, olhares e conclusões sobre a realidade.
Mas, a história pode contar com alternativas, como a literatura, que reflete aspectos intimistas da realidade, embora contenha os mesmos perigos dos documentos oficiais. Um exemplo pontual e interessante é a produção literária regional, pela sua importância intimista de conhecer e entender a realidade mais próxima do cotidiano humano, e como resultado da experiência e da interação mais direta do autor com o meio social, econômico, político e mental.
Existem centenas de obras esquecidas ou mesmo perdidas na área regionalista, principalmente as produzidas na primeira metade do século XX. Obras que, mesmo de conhecimento restrito, são raramente lidas ou utilizadas. Como a produção cabocla do escritor valeparaibano Waldomiro da Silveira retratando o mundo rural da região sob outra perspectiva e diferenciada de outras obras, como as do escritor Monteiro Lobato.
Em suas obras o protagonista é o caboclo, com linguagem peculiar e mentalidade ao contrário do fausto do café e das grandes fazendas. Para a história, um olhar diferente e amplo, que expressa o que a linguagem oficial do documento não consegue transmitir. A cultura letrada suplantada como meio de captar o pensamento do homem rural sobre os acontecimentos diários da sobrevivência pessoal e da família, longe dos círculos de poder e riqueza.
Segundo Alfredo Bosi, o escritor traz quadros de paixões elementares, tendência para o patético e para o trágico e, “onipresente, a preocupação com o registro exato dos costumes interioranos” (BOSI, p. 237), como a história de um sitiante que, contraindo lepra, deve abandonar a própria família afundando-se no mato como um réprobo, na obra “Os Caboclos”. Assim, para o Vale do Paraíba ressuscitar e incitar a leitura de um homem que era caipira de coração é resgatar um patrimônio imaterial importante para entender costumes que até hoje sobrevivem, embora diante de um mundo renovado. Museus, escolas e projetos culturais espalhados pela região deveriam olhar com maior carinho para suas obras, a ponto de desenvolver atividades lúdicas de compreensão da herança deixada pelo homem da roça e que ainda afeta a vida nos dias atuais.

Referências
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1970.

Imagens: http//www.sebodomessias.com.br (acessado em 15/07/2010)
educacao.uol.com.br/.../valdomiro-silveira.jhtm (acessado em 15/07/2010)

terça-feira, 20 de julho de 2010

Relação das Pessoas que Costumam Andar na Governança da Vila de Guaratinguetá - 1823-1829

Logo após a Independência do Brasil, foi solicitada pelo governo independente a relação de pessoas que costumavam andar na governança das vilas, exercendo os mais diversos cargos nas câmaras municipais e no poder judiciário.
Tal relação, enviada por diversas vilas para a Mesa do Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro, traz informações interessantes para analisar a composição política e social dos governos locais, estruturada basicamente por homens que ocupavam o topo da pirâmide social, os chamados “Homens Bons”. Cidadãos que viviam da agricultura, com renda superior igual ou superior a 400$000 e eleitores, segundo as regras políticas da época. E, na maioria, representavam o arcabouço militar e administrativo de Portugal, presente na segunda metade do século XVIII na Capitania de São Paulo.
Constavam do referido rol: nome, naturalidade, local de moradia, idade, estado civil e profissão ou atividade, a patente nas milícias da Capitania, além do parentesco que cada um, porventura, tinha uns com os outros.
Para Guaratinguetá, encontramos relacionados sessenta indivíduos aparentados entre si, com as referidas patentes militares. Alguns naturais da vila, outros de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Portugal, vivendo como agricultores e comerciantes.

1. Cap. Mor Jerônimo Francisco Guimarães, natural e morador desta vila, de idade de mais de sessenta anos. Vive de negócios. Casado. (Pai do nº 22, avô do nº 50, sogro do nº 15 e cunhado do nº 31).
2. Cap. Manuel José de Melo, natural da Europa, morador do termo desta vila. Casado, de idade maior de 50 anos. Vive de lavouras (pai do nº 46).
3. Cap. Manuel José da Costa, natural de Parati, morador desta vila. Vive de negócio, maior de 50 anos, viúvo.
4. Sargento Mor Máximo dos Santos Souza, casado, natural da vila de Cunha, morador do termo desta vila. Maior de 40 anos, vive de lavoura. (Pai do nº 27 e sogro do nº 48).
5. Sargento Mor Antônio dos Santos Silva, natural da Província de Minas, morador desta vila. Casado, maior de 50 anos, vive de lavoura. (Pai do nº 56, genro do nº 13 e cunhado do nº 6).
6. Sargento Mor Bartolomeu de Moura Fialho, natural de morador desta vila. Casado, maior de 60 anos. Vive de lavoura. (Pai dos nº 8 e 17, cunhado do nº 5).
7. Sargento Mor Francisco Vieira Novais, natural da Europa, morador desta vila. Casado, maior de 50 anos, vive de lavoura. (Pai do nº 9 e sogro do nº 32).
8. Cap. Bartolomeu de Moura Fialho, natural e morador desta vila. Maior de 30 anos, casado, vive de lavoura. (Filho do nº 6, genro do nº 13, irmão do nº 17 e cunhado do nº 39).
9. Capitão João Francisco Vieira, natural e morador desta vila. Maior de 30 anos, solteiro, vive de lavoura. (Filho do nº 7 e cunhado do nº 32).
10. Cap. João de Meireles Freire, natural e morador desta vila. Casado, maior de 50 anos, vive de seu negócio. (Cunhado do nº 20, primo dos nº 32 e 51).
11. Capitão José Luiz de Brito, natural da Europa, morador desta vila. Casado, maior de 40 anos, vive de lavoura. (Cunhados dos nº 19 e 36, sogro do nº 34).
12. Capitão Inácio Correia Leite Galvão Freire, natural e morador desta vila. Casado, maior de 40 anos, vive de lavoura.
13. Cap. Tomaz Marcondes da Silva, natural da vila de Pindamonhangaba e morador desta vila. Viúvo, maior de 50 anos, vive de lavoura (Tio do nº 29, sogro do nº 5, 8 e 54).
14. Cap. Domingos Correia Leite, natural da vila de Pindamonhangaba, morador desta vila. Solteiro, maior de 40 anos, vive de negócio.
15. Cap. Antônio José dos Santos, vive de lavoura, natural e morador desta vila, casado, maior de 50 anos. (Genro do nº 1 e pai do nº 50).
16. Capitão João Damasceno Ferraz, natural e morador desta vila. Solteiro, maior de 50 anos, vive de lavoura.
17. Cap. Francisco dos Santos Moura, natural e morador desta vila. Casado, maior de 30 anos, vive de lavoura. (filho do nº 6, irmão do nº 8, genro do nº 21 e cunhado do nº 39).
18. Capitão Manuel Gonçalves de Carvalho, natural da Província de Minas e morador desta vila. Casado, maior de 60 anos, vive de lavoura. (Cunhado dos nº 1 e 58)
19. Tenente Francisco José Nogueira, natural e morador desta vila. Casado, maior de 40 anos, vive de lavoura. (cunhado dos nº 11 e 37, irmão do nº 36 e tio do nº 54).
20. Tenente Agostinho Leite de Almeida, natural da vila de Jacareí e morador desta vila. Casado, maior de 40 anos, vive de negócio. (Pai do nº 42 e cunhado do nº 10).
21. Tenente Francisco Antunes de Vasconcelos, natural e morador desta vila. Casado, maior de 50 anos, vive de lavoura. (Sogro dos nº 17, 29 e 30).
22. Ajudante Francisco das Chagas Guimarães, natural e morador desta vila, maior de 30 anos, casado. Vive de lavoura. (filho do nº 1, tio do nº 50, sobrinho do nº 48).
23. Alferes Salvador Fernandes Viana, natural da vila de Parati, morador desta vila. Casado, 54 anos, vive de negócio.
24. Alferes Lúcio José Monteiro, natural da Província de Minas, morador desta vila. Viúvo, vive de lavoura. (sogro do nº 40).
25. Alferes José dos Reis dos Santos, natural da vila de Cunha, morador desta vila. Casado, maior de 40 anos, vive de lavoura.
26. Alferes José Monteiro Silva, natural da vila de Cunha, morador desta vila. Viúvo, maior de 50 anos, vive de negócio.
27. Alferes Vitoriano dos Santos Souza, natural e morador desta vila. Solteiro, 28 anos, vive de lavoura. (Filho do nº 4 e cunhado do nº 48).
28. Alferes José Joaquim da Mota, natural do termo de Lorena, morador desta vila. Casado, vive de lavoura. (Cunhado do nº 35).
29. Alferes Antônio Bicudo de Siqueira, natural da vila de Pindamonhangaba, morador desta vila. Casado, maior de 40 anos. (sobrinho do nº 13 e genro do nº 21).
30. Alferes Máximo Xavier Romeiro, natural e morador desta vila. Casado, de 30 anos, vive de lavoura. (Genro do nº 21 e cunhado do nº 55).
31. Alferes José Rodrigues Coura, natural e morador desta vila, casado, maior de 50 anos. Vive de lavoura. (Cunhado dos nº 1 e 49).
32. Alferes Antônio Gonçalves de Oliveira, natural e morador desta vila. Maior de 30 anos, casado, vive de seu negócio. (Primo dos nº 10 e 42, genro do nº 7, cunhado do nº 9).
33. Alferes Manuel da Silva Reis, natural e morador desta vila. Casado, maior de 30 anos, vive de lavouras.
34. Alferes Antônio de Paula e Silva, natural da Província de Minas e morador desta vila. Casado, maior de 30 anos. Vive de negócio e lavoura. (Genro do nº 11).
35. Alferes José de Rezende, natural e morador desta vila. Casado, maior de 40 anos, vive de lavoura. (Cunhado do nº 28).
36. Guarda Mor José Martins Nogueira, natural e morador desta vila. Solteiro, maior de 50 anos. (Cunhado dos nº 11 e 37, irmão do nº 19).
37. Guarda Mor Manuel José de Castro, natural da Europa, morador desta vila. Casado, maior de 50 anos, vive de lavoura. (Cunhado dos nº 19 e 36, pai do nº 54).
38. Guarda Mor Manuel Teixeira Guimarães, natural da Europa, morador desta vila. Casado, maior de 60 anos.
39. Manuel José Bitencourt, natural da Europa, morador desta vila. Casado, maior de 40 anos, vive de lavoura. (Genro do nº 6 e cunhado dos nº 8 e 17).
40. Nuno da Silva Reis, natural e morador desta vila. Casado, maior de 30 anos, vive de lavoura. (Filho do nº 25, genro do nº 24, neto do nº 6 e sobrinho dos nº 8 e 17).
41. Francisco de Moura Ávila, natural e morador desta vila. Casado, maior de 50 anos, vive de lavoura. (Tio do nº 40, primo dos nº 8 e 17, sobrinho do nº 6).
42. João de Meireles Leite, natural e morador desta vila. Solteiro, maior de 30 anos, vive de negócio. (Filho do nº 20, sobrinho do nº 10 e primo do nº 42).
43. Luiz Martins de Carvalho, natural da Europa, morador desta vila. Casado, vive de lavoura, maior de 60 anos.
44. Antônio José Teixeira, natural da Europa, morador desta vila. Casado, maior de 50 anos, vive de negócio.
45. Antônio Lobo de Oliveira Pompeu, natural de Taubaté, morador desta vila. Viúvo, maior de 40 anos, vive de negócio.
46. João Francisco Junqueira Silva e Melo, natural e morador desta vila, solteiro, 17 anos. Vive sob pátrio poder. (Filho do nº 2).
47. José da Costa Pinto, natural da Europa, morador desta vila. Viúvo, maior de 30 anos. Vive em companhia de seu irmão o Reverendo Vigário desta Vila.
48. Alferes Mariano Xavier de Castro, natural da vila de Cunha e morador desta vila. Casado, maior de 40 anos. Vive de contratos com a Fazenda Nacional. (Genro do nº 4 e cunhado do nº 27).
49. Antônio Gonçalves Cordeiro, natural e morador desta vila. Casado, maior de 40 anos. Vive de lavoura. (Cunhado do nº 31).
50. Antônio Clemente dos Santos, natural e morador desta vila, solteiro, maior de 25 anos. Vive de negócio. (filho do nº 15, neto do nº 1 e sobrinhos dos nº 22 e 58).
51. Manuel Rebelo Leite, natural e morador desta vila. Casado, maior de 40 anos, vive de lavoura. (Cunhado do nº 10).
52. Francisco de Paula Ferreira, natural da Província de Minas, morador desta vila. Casado, vive da cadeira de gramática latina. (Cunhado do nº 53).
53. Francisco José da Costa, natural e morador desta vila. Solteiro, maior de 30 anos, vive de negócio. (Cunhado do nº 52).
54. Manuel José de Castro, natural e morador desta vila. Casado, maior de 30 anos, vive de lavoura. (Filho do nº 37, sobrinho dos nº 19 e 36 e genro do nº 13).
55. Luiz Antônio de Camargo, natural da cidade de São Paulo e morador desta vila. Casado, maior de 40 anos, vive de sua botica. (cunhado do nº 30).
56. Antônio dos Santos Silva, natural e morador desta vila. Casado, maior de 30 anos, vive de lavoura. (Filho do nº 5).
57. Manuel Lescura Banher, natural e morador desta vila. Maior de 30 anos, vive de lavoura.
58. José Francisco Guimarães, natural e morador desta vila, maior de 50 anos. Viúvo, vive de lavoura. (irmão do nº 1, tio dos nº 22 e 50).
59. Capitão Manuel Galvão de França, natural e morador desta vila. Casado, vive de lavoura, maior de 40 anos.
60. Alferes Inácio Joaquim Monteiro, natural da cidade de São Paulo, morador desta vila, maior de 50 anos.

Nota: documento localizado no Arquivo Nacional (1990), quando pesquisava a biografia do Comendador José Francisco da Silva Guerra, natural de Guaratinguetá e político influente da região na segunda metade do século XIX. Arquivo Nacional – Mesa do Desembargo do Paço.
Imagem: Uniformes militares - Álbum de aquarelas sobre uniformes militares do período colonial brasileiro, provavelmente do século XVIII, de várias regiões do país. Foto: Rômulo Fialdini/Livro MHN/Banco Safra.
In: http://www.museuhistoriconacional.com.br/images/galeria22/mh-g22a025.htm. Acessado em 18/07/2010.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Usina Sodré – Patrimônio Sem Acesso

A área onde está situada a usina Sodré, no bairro dos Pilões, em Guaratinguetá, originou-se da antiga fazenda ou sítio denominado Sodré, com extensa superfície, segundo testemunhas de época, Benjamin Teixeira Guimarães e José Benedito Alves. O primeiro proprietário foi Antônio Clemente dos Santos (primeiro prefeito de Guaratinguetá no período da regência), segundo os embargos inclusos no processo de divisão das terras movido pela Companhia Luz e Força de Guaratinguetá contra Manuel Jacinto Pereira e outros, considerados condôminos da unidade agrícola, entre elas, a Companhia Imobiliária Brasileira, com sede na cidade de São Paulo.
Chamados ao processo, vários interessados apresentaram escrituras provando posse legítima das terras, sendo contestados pela companhia responsável pela usina, em 1921 (Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá – Maço 122 – 1º Ofício).
Pelos documentos apresentados, a filha de Antônio Clemente dos Santos, Dona Pórcia Francisca dos Santos recebeu parte das terras em herança e vendeu-as à Companhia Imobiliária Brasileira (em 1927, entrou em demanda com a Companhia de Força e Luz pelas mesmas terras).
Outros proprietários, na segunda metade do século XIX, foram Manuel Jacinto Pereira, Jacinto Feliciano Martins, Barão da Bocaína, Manuel Inocêncio de Moura Marcondes, Comendador Manuel Jorge Gonçalves Campos e, por ocasião do processo, mais de 30 proprietários.
Atualmente pertence a uma autarquia do governo e o acesso é restrito, sendo necessária autorização e agendamento.
Parece mais um patrimônio fadado ao destino de desaparecer.

Imagens: Fotografias da Antiga Usina Sodré. Acervo do Museu H.P. Conselheiro Rodrigues Alves.

sábado, 17 de julho de 2010

Socialização da História e do Patrimônio Cultural

Para escrever a nossa história utilizamo-nos dos mais variados procedimentos e fontes disponíveis, mas a premissa não é unanimidade ao considerarmos o universo de produção cultural do homem em sua ampla diversidade. É uma temática complexa e discutível, sempre cogitada e pouco esclarecedora. A unanimidade na pesquisa histórica fica muito restrita ao universo das fontes escritas, o que relacionado com o universo patrimonial do homem é apenas um grão de areia.
O que deve ser observado é que necessitamos acelerar e dinamizar, na prática, o que costumamos apenas dizer em livros, palestras e congressos. Não há mais espaço para frases e chavões que evoquem a importância do nosso patrimônio, se não houver explícita concretização de ideias. Apenas pelo pensamento os resultados serão ínfimos como tem acontecido na maioria das vezes. Ações isoladas, esporádicas e precariamente estruturadas não estão produzindo efeito para a socialização da história. A consciência histórica parte necessariamente de um prévio conhecimento, mas sem o exercício lúdico da produção e de suas razões de existir não há mudança no olhar e na postura. Desemboca-se, assim, na realidade do enfrentamento dos desafios de formar futuras gerações com base em práticas constantes e muito mais participativas para conhecer o passado e o presente.
O mesmo deve acontecer com a discussão sobre a educação patrimonial, como uma forma específica de preservação da história, especialmente no Vale do Paraíba, onde a minoria fala muito, faz pouco e, ainda, dorme em falso berço esplêndido.
Percebe-se enfaticamente que alguns grupos se constituem como detentores de um patrimônio que é universal. Conhecem e defendem-no sem a preocupação de envolver outros grupos diversificados da sociedade. Principalmente na esfera que comanda a educação no país, nas escolas e em outras instituições culturais.
Imagem: Escultura encimada em túmulo no Cemitério dos Passos - Guaratinguetá - Joaquim Roberto Fagundes - junho 2010.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Série Imagens para Pensar

Na história é fundamental o exercício de observação e, portanto, é interessante praticar vendo e fazendo a leitura de imagens de homens e mulheres do passado valeparaibano. Pela fotografia de pessoas que pertenceram ao mundo que não foi o nosso, produzidas na segunda metade do século XIX, pode-se inferir expressões do rosto e do corpo, as roupas, a postura e o ambiente retratado e, com isso, aprender um pouco de como viviam os nossos antepassados. Portanto, observe e tire as suas conclusões. Sempre que possível colocaremos algumas imagens do passado para pensar.


























O primeiro, da esquerda para direita, é o Coronel Antônio Pires Barbosa, nascido em Guaratinguetá e que se tornou chefe do Partido Conservador após a morte do Visconde de Guaratinguetá, em 1879. Era fazendeiro de café no bairro da Jararaca, e como era o costume da época, exerceu inúmeros cargos no poder judiciário local, como juiz de paz, juiz municipal e de órfãos, vereador e presidente da Câmara.

O segundo, é atribuído como o menino João Bapstista de Andrade, um dos inúmeros membros da família Andrade Almada, natural do município de Cunha, que teve este nome. Não ocupou cargo algum pelo que sabe. Parece ter vivido em Guaratinguetá. No momento da foto devia ter entre 13 e 15 anos, período em que o menino passava para a fase adulta e, portanto, já teria que se portar como um homem, com roupas sóbrias de acordo com a moda do final do século XIX.

Imagens: Acervo do Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Doação de Terras para a Capela de Areias

A doação de terras para o patrimônio de capelas foi ato consolidado durante o período colonial brasileiro, sendo, muitas das vezes, a gênese de um núcleo urbano ou de um bairro.
O costume teve origem, entre outros motivos, na reafirmação da fé e no credo católico da população a um santo de sua preferência. Um demonstrativo da religiosidade popular como um dos elementos principais da configuração social do país. A necessidade para o homem colonial de erigir publicamente prédio para assistência de missa e expressão de angústias terrenas ao santo de sua guarda, em cuja morte ele vivia e deixava parte de seus bens.
Partia, então, dos moradores da localidade, a iniciativa de fazer a doação de parte de suas terras para a edificação de uma capela ou para a constituição de um determinado patrimônio religioso, ajudando, até mesmo, no material e na mão-de-obra, ou na doação de alfaias e imagens. Tudo de comum acordo com as autoridades eclesiásticas, que aprovava, ou a não, a iniciativa.
E, para o Vale do Paraíba, as escrituras de doação de terras para a constituição do patrimônio das capelas são encontradas nos livros tombos existentes nas dioceses e arquidioceses de alguns municípios, assim como, nas prestações de contas de capelas que integra a documentação do Juízo da Provedoria existente no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Neste sentido, para ilustrar com pequenas observações e breves comentários uma pesquisa sobre o tema, disponibilizamos, em linguagem atual, parte de uma escritura de doação de terras para a capela da vila de Areias em 1798.

Escritura: Traslado da Escritura de Doação que fazem Ângelo José Bittencourt, viúvo, Claro Francisco Rodovalho, e sua mulher Ana Bueno de Siqueira a Fábrica desta Matriz de Santana das Areias.

“Saibam quantos este público instrumento de doação virem, que sendo no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos noventa e oito [1798] aos trinta dias do mês de julho do dito ano nesta Freguesia das Areias, termo da Vila de Lorena, em casas de morada do Reverendo Vigário José Rebouças da Palma, onde eu Tabelião ao diante nomeado fui vindo, sendo aí achei presentes partes concertadas e doantes a saber: Claro Francisco Rodovalho, e sua mulher, Ana Bueno de Siqueira, e bem assim, Ângelo José Bittencourt, homem viúvo, todos moradores nesta freguesia e reconhecidas de mim Tabelião pelos próprios de que faço menção e dou fé; e logo pelos ditos doadores todos juntos, uniformemente me foi dito em presenças das testemunhas ao diante nomeadas e no fim deste instrumento assinadas, que eles são legítimos senhores e possuidores de todo o restante dos chãos do dote da Igreja Matriz desta Freguesia, cujo dote sabem é de sessenta e cinco braças em quadra, fazendo peão na mesma igreja, e por isso pertencem a eles doadores todo o mais restante de chãos que se acharem entre os dois córregos, da parte de uma o que serve de aguada a casa do Reverendo Joaquim José da Silva, e da parte de baixo o córrego denominado Lavapés, que faz barra no Ribeirão das Areias; e nos lados assim para baixo, como para cima, até o Ribeirão dito das Areias, e até a beira do Mato Virgem, que se acha para cima da Igreja; por já estar dado por legítimas pessoas, e que isto houveram pela maneira seguinte, eles doadores Claro Francisco Rodovalho e sua mulher por herança do seu falecido Pai e Sogro o Tenente João de Toledo Piza, e o doador Ângelo José Bittencourt por compra que fez ao seu irmão o Padre Manuel José Bittencourt – e por serem senhores na forma dita doavam de suas livres vontades a Fábrica da Igreja Matriz desta Freguesia, observando-se as condições abaixo declaradas quais são: que ele doador Bittencourt reservava desta doação para si, e se os posteriores os chãos em que se acha morando a viúva Maria de Freitas Maciel com os fundos respectivos até o Córrego chamado Lavapés, que serve de divisa; e os outros doadores reservam chãos, que comodamente chega para seis lanços de casas com os respectivos fundos, ainda que os ditos lanços de casas não sejam mistos, por que há de ainda para alugar para plantar as ditas casas por si ou por outras pessoas, ainda por seus descendentes, ficando para isso já marcado e assinalado, aliás marcado, e assinalado, e assim mais disse ele doador Bittencourt que reservava na beira do Córrego, que divisa da parte de uma na frente das casas do Padre Joaquim, os chãos chegam para três lanços de casas com seus fundos...”

Comentários: A escritura mostra, primeiramente, uma linguagem arcaica e com termos em desuso, o que por vezes, pode atrapalhar a interpretação por pessoas leigas. Indica, também, que a ereção de uma primitiva capela foi realizada anterior a 1798, pois a escritura cita a existência de uma matriz e que as terras doadas eram remanescentes das terras que já pertenciam para a mesma igreja.
Faz descobrir, em segundo lugar, por pesquisas em outros documentos, que a freguesia de Areias surgiu como parte administrativa da vila de Lorena na segunda metade do século XVIII, mas que o povoamento vem desde a época da abertura do Caminho Novo para o Rio de Janeiro, na primeira metade do século XVIII. Como local de passagem e pouso nos ranchos de beira de estrada e zona de fronteira agrícola aberta que possibilitou a fixação do homem, principalmente por posse ou pelo regime de doação de sesmaria.
E que, em 1798, já existia adiantada como freguesia, com algumas casas e diversos outros moradores além dos mencionados na escritura, como se pode constatar nos maços de população da Vila de Lorena daquele ano. Já existindo, também, pequenos sítios com agricultura de subsistência e comércio de beira de estrada. Tudo formado por pessoas, em sua maioria, oriundas das vilas de Pindamonhangaba, Guaratinguetá, Lorena e Cunha, a exemplo dos doadores que aparecem na sobredita escritura.
Claro Francisco Rodovalho, nascido em Guaratinguetá por 1768, era filho do João de Toledo Piza, falecido em Guaratinguetá, e de sua mulher Leonor Correia Leme, nascida na mesma localidade. Sua esposa, Ana Bueno de Siqueira, era filha de José do Rêgo de Siqueira e de Maria Bueno de Lima, naturais de Pindamonhangaba. Ângelo José Bittencourt, nascido, também, em Guaratinguetá, era filho de Manoel José de Bittencourt e de sua mulher Maria do Rego Barbosa. E foi casado em 1765, na referida vila, com Helena Soares Leite, filha de Sebastião Machado de Lima e de Quitéria Soares Leite, naturais e falecidos no bairro da Capela (Aparecida).

Vocabulário Base

Aguada: divisa
Alferes: oficial da Companhia militar das Ordenanças responsável por levar a bandeira do regimento e substituía o capitão em suas ausências.
Braça: medida de comprimento equivalente a 2,2 m.
Caminho Novo: estrada entre a região de Lorena e o Rio de Janeiro, onde atualmente situam-se as cidades do Vale Histórico.
Capitania: Unidade territorial administrativa no Brasil Colonial.
Capitão: oficial da Companhia das Ordenanças responsável por um regimento militar.
Chãos: terra para prédios e edifícios. Comumente utilizado, no século XVIII, como terreno situado próximo ou na área urbana.
Comércio de beira de estrada: pequenas tendas, ranchos ou casas que serviam como ponto de comercialização de produtos e prestação de serviços.
Dote: bem em espécie ou em escravos que se dava ao casal para sustentar financeiramente o casamento; bens doados para Igreja para que pudesse desfrutar economicamente ou como local para edificação religiosa.
Fábrica: Rendas aplicadas na sacristia das igrejas para a sua manutenção financeira. O necessário para a construção de um edifício.
Freguesia: unidade territorial religiosa, composta por uma igreja e seus fregueses (moradores).
Lanço: cômodos ou cubículos.
Maços de População: Série documental que traz o recenseamento da população na Capitania de São Paulo, entre os anos de 1765 e 1836.
Peão: encontro de determinada terra com outra limítrofe.
Quadra: distância entre uma esquina e outra do mesmo lado de uma rua.
Ranchos de beira de estrada: locais estratégicos ao longo dos caminhos onde os viajantes paravam para pernoite e alimentação e a dos animais. Alguns possuíam toda a sorte de serviços, como pousada rústica ao ar livre, cuidados com os cavalos, selaria, ferraria e carpintaria.
Sesmaria: porção de terra de medida variável que eram doadas pelo governo portugues , entre os séculos XVI e XIX, para o assentamento de famílias.
Subsistência: termo que designa, no presente texto, a agricultura não comercial, trabalhada para sustento da própria família.
Zona de Fronteira Agrícola Aberta: região com terras desocupadas que oferecia potencial para estabelecimento da agricultura.

Referências de Consulta

Fontes Primárias

ARQUIVO DA CÚRIA DIOCESANA DE LORENA. Livro Tombo da Igreja Matriz de Areias. fls. 11v.
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Maços de População de Lorena, 1798.
BLUTEAU, Rafael (Padre). Diccionario da Lingua Portugueza. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.
LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana. São Paulo: Duprat e Cia, 1903-1905. 9 volumes.
SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugeza. 4 ed. Lisboa: Imprensa Régia, 1831.

Bibliografia

FAGUNDES, Joaquim Roberto. Genealogia Guaratinguetaense – Título Machado de Lima. Inédito datilografado, 2006.
SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA. Registro de Terras de São Paulo: São Miguel de Areias, volume 3. São Paulo: Divisão de Arquivo do Estado, 1994.
Imagem: Antiga Capela da Vila de Areias. Thomaz Ender, 1817.